Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos
(Mc 2,18-22)
Naquele tempo, os discípulos de João Batista e os fariseus estavam jejuando. Então, vieram dizer a Jesus: “Por que os discípulos de João e os discípulos dos fariseus jejuam, e os teus discípulos não jejuam?” Jesus respondeu: “Os convidados de um casamento poderiam, por acaso, fazer jejum, enquanto o noivo está com eles? Enquanto o noivo está com eles, os convidados não podem jejuar. Mas vai chegar o tempo em que o noivo será tirado do meio deles; aí, então, eles vão jejuar. Ninguém põe um remendo de pano novo numa roupa velha; porque o remendo novo repuxa o pano velho e o rasgão fica maior ainda. Ninguém põe vinho novo em odres velhos; porque o vinho novo arrebenta os odres velhos e o vinho e os odres se perdem. Por isso, vinho novo em odres novos”.
No Evangelho de hoje, Jesus se apresenta como o esposo. É interessante notar que a Tradição da Igreja sempre identificou João Batista como aquele que preparou as núpcias e a vinda do esposo, Cristo. É o que verdadeiramente significa a história da salvação para nós. João Batista é só uma preparação.
Deixando de lado a realidade de João Batista, é importante fixar bem no coração a realidade do Cristo esposo, esposo de nossas almas.
Por que é tão importante essa realidade? Em primeiro lugar, é necessário notar o seguinte: quando as Sagradas Escrituras nos falam de Cristo como esposo, é evidente que a esposa é a Igreja.
Não estamos falando de uma alma individual, de uma pessoa em específico. Estamos falando da Igreja como um todo, que é esposa de Cristo; mas a esposa como um todo não será esposa, se cada um dos membros não for esposa. Ou seja: nós temos de entender que, assim como a esposa deseja se unir ao esposo, nós precisamos também desejar a união com o Cristo.
É aqui que está o alvo e a finalidade de toda a vida cristã. Quando as pessoas se convertem, passam a amar Jesus, mas o amor com o qual a maior parte das pessoas começa a caminhada de seguimento a Cristo é muitas vezes um amor servil, como o de um servo que faz a vontade de seu senhor, vai seguindo os mandamentos e evitando os pecados.
Este amor pode crescer e se tornar um amor de filho. O filho que não faz somente o que é obrigação de servo ou de escravo, mas faz muito mais. Para o filho não há feriado, não há oito horas de trabalho. Ele sabe que é herdeiro do pai, por isso se dedica constantemente, o tempo todo, ao pai. É um amor filial.
Mas esse amor, que já é uma evolução — evoluiu de amor de servo para amor de filho —, ainda não é o máximo de amor que nós podemos dar a Deus. O filho se entrega ao pai totalmente, mas o filho não quer se unir ao pai como a esposa quer se unir ao esposo.
É aqui que nós, membros da Igreja, devemos focar o nosso fim último, a nossa vocação verdadeira. Precisamos evoluir. Começamos obedecendo aos mandamentos, depois passamos por uma fase de generosidade e de amor filial que supera o amor servil; mas é necessário querer ser a esposa que se une ao esposo.
Na Eucaristia, Jesus diz: “Isto é o meu corpo, que é dado”. Quando foi que esse esposo deu o seu corpo à esposa? Foi na Cruz. Foi exatamente na Cruz que Cristo se entregou totalmente, para que nós pudéssemos nos unir a Ele. Então, se o esposo está dizendo: “Isto é o meu Corpo, que é dado”, também eu, como membro da Esposa, devo me entregar e, como toda esposa o faz, dizer: “Isto é o meu corpo, que é dado”.
Eu preciso verdadeiramente me entregar ao esposo. Não se trata somente de penitências, jejuns, dificuldades de vida… Trata-se verdadeiramente de amor, amor de quem quer se unir, mesmo que isso signifique carregar a cruz do dia a dia.
Então vamos lá! Vamos, como membros dessa esposa maravilhosa que é a Igreja, entregar tudo, como a esposa entrega o corpo ao esposo.
Abracemos as cruzes cotidianas, renunciemos ao pecado, à nossa miséria, ao nosso egoísmo, e generosamente queiramos nos unir a Ele. Esse é o caminho, esse é o projeto, essa é a meta. Vamos caminhar para lá.
Não seja preguiçoso, nem pense que a vida cristã vai ser simplesmente uma vida de pequenas obrigações. É vida de amor. O cristianismo não é um moralismo esmagador, é um projeto de amor de um esposo e de uma esposa que se amam sem limites.
* * *
COMENTÁRIO EXEGÉTICO
Argumento. — Trata-se do terceiro conflito com os fariseus, ocasião para o Mestre expor sua doutrina sobre a relação entre o espírito novo e o antigo. A questão aqui não é sobre preceitos da Lei, mas sobre alguns costumes piedosos dos judeus; em particular, o de jejuar certos dias da semana.
1) As circunstâncias de tempo e lugar parecem claramente indicadas por Lc.: durante um banquete em casa de Levi (cf. 5,29); também Mt. escreve: Então foram ter com ele etc. (9,14; cf. v. 10). Mc., no entanto, afirma explicitamente que o episódio ocorreu no dia em que tanto os fariseus quanto os discípulos do Batista jejuavam, o qual dificilmente seria o dia de jejum legal (a saber, a festa da Expiação), mas um dia de jejum por devoção privada; os fariseus, com efeito (e, ao que parece, também os discípulos de João), jejuavam frequentemente (Lc.: πυκνά), sobretudo às 3.as e 5.as-feiras.
2) Exposição do texto (cf. Mt 9,14-17; Mc 2,18-22; Lc 5,34s). — Mt 9,14: Então, os discípulos de João (Mc. acrescenta: e os fariseus; Lc.: os fariseus e os mestres da Lei), dirigindo-se a ele, perguntaram: Por que jejuamos nós e os fariseus, e os teus discípulos não? Perguntam-no os discípulos de João, movidos talvez por certa rivalidade, e alguns fariseus, a) ou porque Cristo não impusera aos próprios discípulos nenhum preceito especial de jejum, como os fariseus e João, b) ou porque, como dito acima, no mesmo dia do banquete (cf. Mt 9,10; Mc 2,15; Lc 5,29), estavam eles de jejum por devoção privada.
A isto responde Cristo com fina sabedoria: agora o jejum seria intempestivo e, além do mais, nocivo, o que ele explica em seguida com quatro belas e elegantes parábolas, rebatendo a questão com outra:
a) Os filhos do esposo (cf. Mt 9,15; Mc 2,19s; Lc 5,34s):
α) Imagem. — Enquanto dura o tempo das bodas, não convém que os convidados jejuem, pois isto seria dar sinais de tristeza (Mt.: πενθεῖν = chorar, lamentar) num momento em que é preciso alegrar-se. Do mesmo modo, é indecoroso que os discípulos, enquanto estão na companhia de Cristo, se macerem de jejuns e obras de penitência. Após a ida dele, será tempo de jejuar e chorar. — A expressão filhos do esposo (em Mc., filhos das bodas, lt. filii nuptiarum; gr., nos três sinóticos, οἱ υἱοὶ τοῦ νυμφῶνος, i.e., filhos do tálamo ou do cubículo nupcial; hebr. benê chuppa), embora designe na Mishna (cf. Hier. Sukk. 53a) todos os convidados para as bodas, parece significar aqui certos adolescentes em companhia dos quais o esposo ia ao encontro da noiva, com pompa festiva e alegre. Cabia-lhes manter a alegria durante os sete dias de núpcias. Não devem ser confundidos com os chamados amigos do esposo (hebr. shoshbînîn, gr. παρανυμφίοι) de que se fala em Jo 3,29, que eram apenas dois (ao menos na Judeia) e gozavam de maior familiaridade, mesmo no que dizia respeito apenas ao casal.
β) Sentido espiritual. — A permanência do Verbo encarnado entre os homens é certo tempo de bodas (cf. Sl 44 e Ct, passim), no qual têm os convidados o único dever de desfrutar da presença do Esposo e em tudo lhe fazer a vontade; mas dias virão em que lhes será tirado (ἀπαρθῇ, alusão à morte de Cristo) o esposo, e então eles jejuarão, i.e., terão luto e tristeza pelas tribulações iminentes e pela ausência de Cristo. Como se depreende das palavras dias virão etc., é evidente que a imagem é uma comparação mais alegórica que estrita.
b) Retalho novo em roupa velha (cf. Mt 9,16; Mc 2,21; Lc 5,36):
α) Imagem. — Ninguém põe (gr. ἐπιράπτει = costura, cose) um remendo (gr. ἐπίβλημα, lt. vulg. assumentum; em Mt.: comissuram) de pano novo (ἀγνάφου = pano cru, ou ainda não apisoado) numa veste velha, porque arrancaria uma parte (gr. πλήρωμα, lt. plenitudinem) da veste, ou seja, quando se molhar, irá contrair-se, repuxando as partes circunstantes, e por isso o rasgão ficaria pior que dantes. Mc. o diz com mais clareza: do contrário, o remendo novo leva parte do velho, e torna-se maior o rasgão. A mesma ideia, um pouco modificada, é apresentada por Lc.: Ninguém tira retalho de roupa nova para fazer remendo em roupa velha; senão vai rasgar a roupa nova, e o retalho novo não combinará com a roupa velha. Em Mt. e Mc., portanto, o que sofre prejuízo é a roupa velha, ainda mais rasgada; em Lc., a nova, retalhada sem propósito.
β) Sentido espiritual. — Da questão sobre o jejum Cristo se eleva a um argumento mais amplo e profundo, a saber: ao espírito da Nova Lei, i.e., do Evangelho, na medida em que se opõe, segundo a interpretação dos fariseus, ao rigor e às múltiplas observâncias da Velha. O remendo de pano rude (pannus rudis) é a lei mosaica; a veste nova, a lei evangélica. Seria pois insensato e perigoso misturar uma com a outra ou tentar complementar a segunda com a primeira. As duas são distintas e como tais devem ser tratadas. Não podem, numa palavra, ser combinadas sem detrimento quer do mais (Lc.), quer do menos instruído (Mt.–Mc.). — Observação: A rigor, a lei divina se divide em antiga e nova, não como em espécies coordenadas sob um gênero comum, mas como o imperfeito se distingue do perfeito dentro da mesma espécie, na medida em que, sendo idêntico o fim de ambas, a segunda ordena o homem a tal fim de modo mais eficaz e perfeito do que a primeira (cf. Santo Tomás de Aquino, STh I-II 107,1c.) [1]. Daí dizer São Paulo que a Lei se nos tornou pedagogo encarregado de levar-nos a Cristo, para sermos justificados pela fé (Gl 3,24).
c) Vinho novo em odres velhos (cf. Mt 9,17; Mc 2,22; Lc 5,37s):
α) Imagem. — Não se coloca tampouco vinho novo (não fermentado) em odres velhos; do contrário, por ser o vinho novo mais forte, os odres, já desgastados pelo uso, se rompem, o vinho se derrama e os odres se perdem. Coloca-se, porém, o vinho novo em odres novos etc. — Os palestinos e, de modo geral, os orientais transferiam o vinho do lagar, antes de ter-se completado a fermentação, para cântaros (dolia) de barro ou madeira, ou também, com frequência, para odres de pele de cabra, ovelha e, mais raramente, de asno e camelo. Se o vinho ainda não totalmente fermentado for guardado em odres velhos, i.e., desgastados pelo uso e pela fricção, é evidente que tanto o vinho quanto os odres vão-se perder.
β) Sentido espiritual é o mesmo da parábola precedente: o novo espírito que o Messias veio trazer não há de ser coarctado àquelas formas antigas, não deve nem pode ser aprisionado naquelas leis estreitas que constituíam o jugo e a servidão da Lei. Aqui, no entanto, se mostra com cores mais vivas como é nociva tal mistura não só para os elementos antigos, mas também para o novo espírito; agrega-se positivamente, ademais, a necessidade de uma completa renovação: cumpre pois que sejam novos, além do espírito, também os homens e os costumes.
d) Vinho novo em odres velhos (cf. Lc 5, 39):
α) Imagem. — E ninguém, depois de beber vinho velho, deseja vinho novo; porque diz: o velho é melhor, i.e., quem está acostumado ao vinho velho, que é sempre mais suave e agradável, se recusa a beber do novo, que é mais acre e áspero ao paladar.
β) Sentido espiritual. — Alguns autores pensam que o ponto da comparação está na qualidade, i.e., na bondade do vinho; ora, dado que o vinho velho é melhor do que o novo, concluem que Jesus estaria comparado a austeridade dos fariseus com o vinho novo, e a suavidade de seus modos com o vinho velho. Contudo, essa interpretação é pouco provável, já que atribui o conceito de “velho” à Lei nova, e o de “novo” à velha, o que vai na contramão das parábolas anteriores. — A mais provável parece ser a sentença, comum entre os expositores, que vê o ponto de comparação, não na bondade do vinho, mas no gosto dos que bebem. O vinho velho, portanto, é a Lei velha, e os que estão acostumados a ela como, e.g., os fariseus e alguns discípulos de João, apenas a contragosto aprenderão a saborear a doutrina nova de Cristo. Trata-se, em suma, de certa escusa para a relutância e pertinácia com que muitos judeus se aferravam às tradições dos antigos.
N.B. — 1. Não convém forçar a interpretação destas pequenas parábolas como se fossem alegorias carregadas de simbolismo. Afinal, o objetivo geral delas consiste em pôr em evidência a incompatibilidade entre o espírito novo do Evangelho e as antigas observâncias legais. São duas coisas que não podem ser confundidas nem unidas; os discípulos de Cristo, por conseguinte, não devem buscar ou aferrar-se ao que não é compatível com a doutrina, os princípios, os valores etc. do cristianismo. Perscrutar minuciosamente que sentido teria cada pequeno detalhe das imagens costuma gerar não poucas incoerências. Diga-se pois que Cristo não condena, como tais, os usos antigos nem as práticas penitenciais dos discípulos de João; limita-se a ensinar que se excluem mutuamente o espírito que inspirava as práticas antigas e o espírito verdadeiramente novo que deve inspirar e orientar a vida dos fiéis. — 2. São Paulo desenvolveu essa doutrina em inúmeros lugares, ao exortar a que vivamos uma vida nova (Rm 6,4); a que sirvamos [a Deus] segundo o novo espírito, e não segundo a antiga letra [da lei de Moisés] (Rm 7,6). Cf. 1Cor 5,7; Ef 4,20-24; Col 3,9s; Rm 12,2 etc. E a fundamenta no fato de que, em Cristo…, passaram as coisas velhas (2Cor 5,17); cf. Gl 6,15; Ef 2,15; Rm 8,1.10 etc. — 3. Donde se vê a incoerência com que algumas seitas protestantes, ao mesmo tempo que condenam como contrárias ao espírito evangélico certas práticas católicas plenamente legítimas (e.g., jejum, abstinência, vigílias, orações pré-formuladas e repetitivas, uso de imagens e paramentos litúrgicos etc.), buscam com afã quase judaizante reviver à letra práticas e símbolos do Antigo Testamento. Ora, se negam em bloco a autoridade dos Concílios ecumênicos, não admira que neguem também a do concílio de Jerusalém (cf. At 15,1-34).
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