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Texto do episódio
01

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus
(Mt 6, 7-15)

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: “Quando orardes, não useis muitas palavras, como fazem os pagãos. Eles pensam que serão ouvidos por força das muitas palavras. Não sejais como eles, pois vosso Pai sabe do que precisais, muito antes que vós o peçais. Vós deveis rezar assim: Pai nosso que estás nos céus, santificado seja o teu nome; venha o teu Reino; seja feita a tua vontade, assim na terra como nos céus. O pão nosso de cada dia dá-nos hoje. Perdoa as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido, e não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal. De fato, se vós perdoardes aos homens as faltas que eles cometeram, vosso Pai que está nos céus também vos perdoará. Mas, se vós não perdoardes aos homens, vosso Pai também não perdoará as faltas que vós cometestes”.

I. Reflexão

O Evangelho de hoje nos apresenta o Pai-nosso segundo o relato de São Mateus; logo, num contexto diferente daquele em que é relatado por São Lucas. No primeiro Evangelho, com efeito, a Oração do Senhor é parte de um ensinamento maior, conhecido como Sermão da Montanha, no qual Jesus estabelece primeiro uma contraposição entre a oração de seus discípulos e a dos pagãos. Diz Ele: “Quando orardes, não useis muitas palavras como fazem os pagãos. Eles pensam que serão ouvidos por força das muitas palavras. Não sejais como eles, pois vosso Pai sabe do que precisais muito antes que vós o peçais. Vós deveis rezar assim: Pai nosso…” etc.

Com isso, o Senhor nos remete à soberana precedência de Deus. O pagão, contudo, pensa que o protagonismo é inteiramente seu. Para ele, é preciso fazer algo para chamar a atenção da divindade. Temos disso um exemplo memorável nos sacerdotes de Baal confrontados outrora por Elias, os quais buscavam atrair a atenção do ídolo ferindo-se com espadas, retalhando a própria carne, fazendo sacrifícios intercalados por muita gritaria. O cristão, por outro lado, sabe que Deus, Pai de infinito amor, não precisa de nada disso. Ele já está pronto para nos conceder o que deseja que lhe peçamos. Eis por que a essência da oração cristã está no Fiat voluntas tua, na conformidade entre a vontade do orante com a de Deus. Também por isso é próprio da oração cristã a consciência de que pedimos muitas vezes o que não devêramos pedir, razão por que os nossos pedidos hão de ser feitos sempre com cautela, quase sob condição: “Senhor, peço-vos o que penso ser bom, mas livrai-me de minhas orações, se o que vos peço, na verdade, é mau. Livrai-me, Senhor, de meus pedidos insensatos”.

Ora, se Deus tem mais desejo de atender à nossa oração do que nós de sermos atendidos, é evidente que, para a nossa oração ser eficaz, temos de aprender a rezar, o que, em outras palavras, equivale a querer e pedir o que Deus mesmo quer e espera nos dar. E isso não se adquire sem conversão, sem mudança, sem metanóia, isto é, sem mudança de mentalidade. Deformados pelo pecado original, nossos desejos e nossas ânsias, nossa tendência a fugir da dor e a buscar o prazer são quase sempre maus conselheiros, que nos levam a pedir em oração o que é supérfluo ou, pior, o que nos pode ser prejudicial. Se somos cristãos — e nós o somos! —, busquemos a mudança de coração, necessária para entendermos que Deus sabe melhor do que nós o que nos convém.

Não deixa, pois, de ser sugestivo o que a primeira palavra que o Senhor nos põe nos lábios é de confiança e piedade: “Pai”. Isso muda a oração inteira. “Se não fordes como crianças”, diz Ele noutro lugar, “não entrareis no reino dos céus”. Como criancinhas, podemos ter certeza de que Deus nos proverá com quanto nos for realmente necessário. É rezando assim: Pai nosso, seja feita a tua vontade, que iremos conformar ao dele o nosso coração, e enfim brotará a prece a que Ele tanto quer atender. Essa é a oração cristã.

II. Comentário exegético

Argumento. — A pedido dos discípulos, propõe-lhes Jesus uma fórmula de oração; em seguida, acrescenta alguns avisos sobre a eficácia da oração perseverante.

Circunstâncias.a) Tempo e lugar. — Sobre o lugar e o tempo em que o Pai-nosso foi proferido nada dizem explicitamente os evangelistas. Mt o insere no Sermão da Montanha, enquanto Lc (cf. 11, 1) exige claramente outra ocasião; mas qual? O fato de Lc colocá-lo após a cena de Betânia permite inferir a proximidade (ao menos provável) de tempo e lugar entre os dois episódios. Mc não relata o Pai-nosso, mas refere alguns ensinamentos parecidos, ditos no caminho de Betânia a Jerusalém (cf. 11, 25s). Uma antiga tradição que remonta ao séc. XI (c. 1095) afirma que o Pai-nosso foi proferido no monte das Oliveiras, perto (“à distância de um tiro de pedra”, Lc 22, 41) do que hoje é o sacelo da Ascensão.

b) Composição. — 1) Lc e Mt preservaram a Oração dominical em formas um pouco distintas. Mt traz 7 petições; Lc, apenas 5 (omite a 3.ª e a 7.ª), formuladas com outras palavras. Qual terá sido a forma original é tema ainda controverso. Se no passado muitos atribuíram ambas as versões ao Senhor, ditas por Ele em diferentes circunstâncias, o que em si mesmo é possível mas não muito provável, hoje a maioria dos autores rejeita essa opinião e atribui as diferenças de forma à tradição oral ou aos critérios redacionais de cada evangelista, o que parece valer também para a forma da consagração (cf. Santo Agostinho, Enchirid. 116: PL 40, 286). — 2) Se se pergunta qual dos evangelistas conservou a forma genuína, cumpre responder com Santo Agostinho que foi Mt, como se infere tanto de sua conhecida fidelidade em transmitir as palavras do Senhor (cf. e.g. as bem-aventuranças, a conclusão do Sermão da Montanha etc.) como da disposição rítmica por ele preservada, de tonalidade mais semítica, ao que se pode acrescentar o costume de Lc de resumir os fatos e as ideias ao essencial.

Explicação. — Instado pelos discípulos a que lhes ensinasse, a exemplo de João Batista, alguma fórmula de oração [1], Jesus recitou esta prece admirável, que pode ser considerada um compêndio da doutrina celeste e um breviário de todo o Evangelho (cf. Tertuliano, De orat. 1: PL 1, 1255). Depois de Santo Agostinho, tornou-se costume entre os latinos distinguir 7 pedidos, dos quais os 3 primeiros (classificados como optata, i.e. desejos) se referem à glória de Deus, enquanto os 4 restantes (chamados petitiones, i.e. petições stricto sensu) apresentam a Deus as necessidades humanas. No entanto, os Padres gregos, seguidos hoje por boa parte dos expositores, distinguem apenas 6 pedidos, na medida em que interpretam o 7.º como complemento do 6.º — Em Mt, a Oração dominical é precedida por uma proibição do multilóquio (gr. πολυλογία) na oração (cf. 6, 7); e, com efeito, do ponto de vista redacional, o v. 7 não é continuação dos vv. 5-6, que censuram a ostentação de piedade e recomendam a oração em segredo, mas uma introdução, ao modo de advertência por contraste, à forma por excelência da oração cristã: “Nas vossas orações não useis muitas palavras”. É incerta tanto a forma quanto a etimologia do verbo gr. correspondente (βατταλογήσητε, ou βαττο…?). O sentido porém se depreende facilmente do contexto, já que é explicado logo em seguida por πολυλογίᾳ; donde: “Não multipliqueis palavras fúteis e inúteis nem vos expresseis prolixamente, como fazem os gentios”. De fato, os pagãos davam excessiva importância aos giros retóricos e ao aprumo de linguagem, e pensavam que à força de palavras poderiam dobrar a vontade divina, como se Deus fora um juiz para quem valesse mais a eloquência das partes que a justiça do caso em apreço [2]. 

N.B. — Leiam-se e.g. as invocações dos profetas de Baal (1Rs 18, 26ss), as séries intermináveis de epítetos grandiloquentes nos hinos babilônicos, as fórmulas encantatórias nos papiros mágicos da época helenística etc. A expressão lt. fatigare deos (cf. Sêneca, Ep. 31, 5; Marcial Ep. 7, 60, 3) atesta o mesmo vício. Também nos escritos rabínicos é comum encontrar orações desnecessariamente prolixas.

— “Julgam que serão ouvidos à força de palavras”, i.e. que a repetição vã de certas fórmulas merece por si só a atenção de Deus, como se Ele gostasse de verbosidade bajulatória ou precisasse de muitas palavras para conhecer os pedidos e as necessidades dos homens. — Atente-se a que o Senhor reprova o uso de muitas palavras por ser algo desnecessário, sobretudo quando se atribui a eficácia da oração à abundância de fórmulas ou ao número de repetições; isso porém não exclui a legitimidade e o valor da oração constante, frequente e até repetida segundo um mesmo padrão. Tampouco é intenção de Cristo dirimir diretamente a controvérsia rabínica sobre o valor da oração em função da duração. Ele mesmo dedicou longos períodos à oração (cf. Mt 4, 1ss; Mc 13, 5; Lc 5, 16; 6, 12; 9, 18; 11, 1; 22, 43; Mt 26, 36ss etc.), recomendou mais de uma vez a oração constante e perseverante (cf. Lc 11, 5-13; 18, 1ss; 22, 40.46 etc.) nem teve medo de repetir ao menos três vezes a mesma oração no Horto (cf. 26, 39.42.44); contudo, não há por que duvidar que Cristo rezasse ao Pai por meio de breves jaculatórias, elevando aos céus sua alma santíssima com a máxima frequência [3].

A Oração dominical. — Os que quiserem conhecer as riquezas do Pai-nosso podem ler nossa tradução ao comentário de Santo Tomás de Aquino, disponível neste link

Dubium. — A quem rezamos no Pai-nosso, a Deus Pai ou a toda a Trindade? A resposta depende da acepção que se dê à palavra “pai” aplicada in divinis, ou seja, se ela é utilizada em sentido primário e pessoal (personaliter), ou derivado e essencial (essentialiter). No primeiro caso, a razão significada pelo nome, por importar uma relação de origem em unidade de natureza, cumpre-se propriamente na primeira hipóstase, chamada Pai (per prius) por referência à geração do Filho; no segundo, a razão significada pelo nome, por importar uma relação de origem com diversidade de natureza, é comum às três hipóstases, chamadas pai (per posterius) por referência à produção das criaturas. Com efeito, na medida em que há certa semelhança entre o que gera e o que é gerado, e sendo comum a toda a Trindade a obra da criação, também o Filho e o Espírito Santo podem ser chamados pai (e.g. Pai do futuro século, dito do primeiro; Pai dos pobres, dito do segundo), porque tanto eles quanto o Pai são o criador do mundo e o princípio de semelhança das criaturas racionais (por imagem, segundo o intelecto e a vontade; por graça, segundo a filiação adotiva; e por glória, segundo a deificação do intelecto) [4]. Em resumo, se se toma “pai” como nome próprio, enquanto importa relações pessoais, a oração dirige-se especificamente a Deus Pai; se se toma, porém, como nome comum, enquanto importa uma referência às criaturas, a oração dirige-se indistintamente às três hipóstases.

Referências

  1. A oração do Pai-nosso não foi ensinada ao modo de preceito, como se o fiel só pudesse rezar segundo aquela forma e com aquelas palavras, mas a título de exemplar, i.e. como modelo que toda outra oração deve seguir; cf. Santo Tomás de Aquino, STh II-II 83, 14 ad 2: “O Senhor não instituiu esta oração para que devêssemos usar somente estas palavras ao rezar, mas porque a intenção de nossa oração deve tender à impetração somente dessas coisas [i.e. das necessárias ou convenientes à salvação eterna], independentemente de como as pronunciemos ou concebamos”.
  2. Cf. Id., STh II-II 83 9 ad 5: “A oração não é apresentada a Deus com o fim de lhe dobrar a vontade, mas de estimular em nós mesmos confiança para pedir. Ora, estimulamos em nós tal confiança sobretudo quando consideramos a caridade dele para conosco, pela qual quer o nosso bem, e por isso dizemos: Pai nosso; e a sua excelência, pela qual no-lo pode dar, e por isso dizemos: que estais nos céus”.
  3. Cf. Id., STh II-II 83, 14c.: “Da oração podemos falar duplamente: de um modo, em si mesma; de outro, segundo sua causa. Ora, a causa da oração é o desejo da caridade, do qual deve proceder a oração. Este desejo em nós deve ser contínuo atual ou virtualmente. Ora, permanece a virtude deste desejo em tudo o que fazemos por caridade; com efeito, devemos fazer tudo para a glória de Deus, como se diz em 1Cor 10. E, segundo isto, a oração deve ser contínua. — Mas a própria oração, considerada em si mesma, não pode ser assídua, porque é necessário ocupar-se em outras atividades […]. Ora, a quantidade de cada coisa deve ser proporcional ao fim dela, assim como a quantidade do remédio à saúde. Por isso é conveniente que a oração dure tanto quanto for útil para excitar o fervor do desejo interior. Quando, porém, excede esta medida, de modo que não possa durar sem cansaço, não se deve estender mais a oração […]. E assim como isso deve ser levado em conta na oração individual por comparação à intenção de quem ora, assim também na oração comum por comparação à devoção do povo”.
  4. Cf. Id., STh I 33, 3c.

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