Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João
(Jo 13, 16-20)
Depois de lavar os pés dos discípulos, Jesus lhes disse: “Em verdade, em verdade vos digo: o servo não está acima do seu senhor e o mensageiro não é maior que aquele que o enviou. Se sabeis isto, e o puserdes em prática, sereis felizes.
Eu não falo de vós todos. Eu conheço aqueles que escolhi, mas é preciso que se realize o que está na Escritura: ‘Aquele que come o meu pão levantou contra mim o calcanhar’. Desde agora vos digo isto, antes de acontecer, a fim de que, quando acontecer, creiais que eu sou.
Em verdade, em verdade vos digo, quem recebe aquele que eu enviar, me recebe a mim; e quem me recebe, recebe aquele que me enviou”.
Uma coisa nos recorda hoje o Evangelho e a outra nos exorta o exemplo de Cristo. Leva-nos o evangelista S. João para dentro do Cenáculo, onde poucas horas antes de ser preso lavou o Senhor os pés aos Apóstolos. Todos conhecemos a cena, de que fazemos memória anual na celebração de Quinta-feira Santa. Mas o de que poucos nos lembramos é que, entre os discípulos a quem Jesus lavou os pés, estava ninguém menos do que Judas, que dali a pouco levantaria o calcanhar, como traidor ingrato, contra quem lho estava a lavar como amigo querido. E esta circunstância, a que damos tão pouca atenção, o primeiro que nos recorda é o quanto vale para Deus uma única alma, ainda que seja a pior e mais pecadora. Se o episódio do Cenáculo não basta para no-lo convencer, vejamos então o que fez o Senhor no deserto ao ser tentado por Satanás. Ofereceu-lhe o demônio todos os reinos e principados da terra, com a condição de que, caído de joelhos, o adorasse: Si cadens, adoraveris me, “se, prostrando-te diante de mim, me adorares” (Mt 4, 9). Quis assim o demônio ver a Cristo ao pé de si, pensando que o poderia comprar ao preço do mundo; mas o que não sabia o inimigo, que nem sempre é bom negociador, é que bastara tirar-lhe uma só alma para o ter prostrado em terra. Porque o Senhor, que não quis ajoelhar-se diante do demônio nem se com isto ganhasse todo o mundo, não resistiu pôr-se aos pés de Judas, em cujo coração se havia metido o mesmo diabo: “Cum diabolus jam misisset in corde ut traderet eum” (Jo 13, 2), se com isto lhe lucrasse a alma. Tendo amado os seus até o fim, não se envergonhou Nosso Senhor de cair de joelhos aos pés de Judas revestido de demônio, para que a todos ficasse claro que uma única alma tem para Ele mais valor do que o mundo inteiro: porque este lhe custou uma palavra no início do mundo, enquanto cada um de nós lhe merecemos o preço de todo o seu Sangue. Ora, “se o mundo custa uma só palavra de Deus, e alma custa todo o sangue de Deus”, julguemos “se vale mais uma alma, que todo o mundo” (Pe. Antônio Vieira, Serm. da 1.ª Dominga da Quaresma, de 1653, §2). É bem verdade que nem todos, apesar de valermos o mesmo preço infinito, alcançaremos a salvação que o Senhor nos mereceu, não pela ineficácia do seu Sangue, que bastaria para redimir mil mundos, mas pela inconstância e dureza de nossa vontade; isso porém não é motivo para deixarmos de rezar por todos, e ainda pelos que mais perdidos parecem. É a isto que nos exorta o mesmo Cristo por meio do mesmo exemplo: Ele, se sabia que Judas não se havia de salvar, nem por isto lhe deixou de lavar os pés, porque a todos os homens deixou abertas as portas da sua misericórdia e a nenhum deles nega a graça de quererem um dia purificar-se nas águas do Batismo. E nós, que não sabemos quem se vai a salvar nem se nos vamos a salvar, devemos ter sempre o propósito de rezar por todos os homens, sobretudo pelos mais pecadores, pois a todos, se se abrirem à ação da graça, quer ser ajoelhar o Senhor para os limpar com o Sangue e livrá-los dos laços do demônio. Não sejamos, pois, baixos estimadores do que valemos nem percamos a esperança de alcançarem a salvação os que parecem tomados do diabo e armados em guerra contra Nosso Senhor: Orate pro invicem ut salvemini, “orai uns pelos outros para serdes curados” (Tg 5, 16).
O que achou desse conteúdo?