Por que os Dez Mandamentos na Bíblia são diferentes dos que aprendemos na catequese? O próprio Catecismo da Igreja Católica (n. 2051) nos indica a resposta, ao apresentar lado a lado, em três colunas, as duas fontes bíblicas do Decálogo [1] e um resumo de cada preceito. Ora, se a própria Igreja admite a diferença entre a formulação bíblica e a catequética, não faz sentido acusá-la de “esconder” ou de “adulterar” a Lei divina.
Pois bem, os principais textos bíblicos que nos falam dos Dez Mandamentos são Ex 20,2-17 e Dt 5,6-21, muito mais longos do que a fórmula catequética ensinada pela Igreja, simples e fácil de memorizar [2]. Como foram escritos os Dez Mandamentos? Lembremos primeiramente que a tradição judaica originária não os chama de Dez Mandamentos, mas de Dez Palavras [3].
De fato, quando Moisés subiu a montanha, o que Deus lhe disse antes de tudo foi: “Eu sou o Senhor teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão”, o que não é mandamento algum, embora seja, para os judeus, a primeira palavra. Trata-se de uma memória do que Deus fez no passado. Se é assim, compreende-se por que a classificação cristã dos Dez Mandamentos difere da judaica: o 1.º Mandamento dos judeus, na verdade, não é um mandamento.
Então, o que para nós são os Dez Mandamentos, os judeus os dividem noutras nove palavras; mas para que o resultado dê dez, e não onze Mandamentos, os dois últimos, que proíbem a cobiça das coisas alheias e da mulher do próximo, são reunidos num único preceito. Assim contam os judeus e, de modo geral, calvinistas, ortodoxos e algumas igrejas greco-católicas [4].
A Igreja latina procede de outra maneira. Nós dividimos os Mandamentos em preceitos propriamente ditos, e a divisão que seguimos é a proposta por Santo Agostinho (a mesma, aliás, seguida até hoje pelos luteranos) [5]. Qual é, então, o 1.º Mandamento? É o que proíbe o culto aos falsos deuses, o que inclui logicamente a idolatria, ou seja, o culto a imagens. Vejamos como a Escritura exprime essa proibição:
Não terás outros deuses diante de mim. Não farás para ti estátua com qualquer figura do que há em cima, nos céus, nem embaixo, na terra, nem nas águas, debaixo da terra. Não te prostrarás diante delas, nem lhes prestarás culto, pois eu sou o Senhor, teu Deus, um Deus zeloso, que cobro a iniquidade dos pais junto aos filhos até a terceira e a quarta geração dos que me odeiam, mas uso de misericórdia até mil gerações para com os que me amam e guardam os meus mandamentos (Dt 5,7-10; cf. Ex 20,3-6).
Na catequese, porém, se aprende o quê? “Amar a Deus sobre todas as coisas”, o que não se encontra nessa passagem do Livro do Êxodo. Na verdade, a fórmula catequética vem de um resumo feito pelo próprio Jesus. Quando lhe perguntaram qual era o primeiro e maior dos Mandamentos, o Senhor foi ao capítulo sexto do Livro do Deuteronômio, onde se lê, não o Decálogo, mas o célebre Shemá: “Ouve, ó Israel! O Senhor é o nosso Deus, o Senhor é um. Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e com toda a tua força” (Dt 6,4s).
A formulação é perfeita e tem a vantagem de ser positiva, por isso é conveniente utilizá-la como síntese do 1.º Mandamento: “Amar a Deus…”. E o que vem em seguida: “Não terás outros deuses”? Embora seja uma afirmação correta, é uma sentença negativa. Jesus preferiu a positiva: “De todo o teu coração, de toda a tua alma”, que é o mesmo que dizer: “sobre todas as coisas” [6].
O 2.º Mandamento diz: “Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão; porque o Senhor não deixará impune quem tomar em vão o seu nome” (Dt 20,7). A fórmula catequética é mais breve: “Não tomar o santo nome em vão”. Já o 3.º Mandamento — motivo de polêmica para quem defende a observância do sábado — reza assim:
Guarda o dia do sábado, santifica-o, como te ordenou o Senhor, teu Deus. Durante seis dias trabalharás para fazer todo o teu trabalho; mas o sétimo é o sábado, em honra do Senhor, teu Deus. Não farás trabalho algum, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu escravo, nem tua escrava, nem teu boi, nem teu jumento, nem algum de teus animais, nem o imigrante que vive em tuas cidades, a fim de que teu escravo e tua escrava descansem da mesma forma que tu. Lembra-te de que foste escravo na terra do Egito, e que o Senhor, teu Deus, com mão forte e braço estendido, te fez sair dali. Por isso, o Senhor, teu Deus, te ordenou guardar o dia de sábado (Dt 5,12-15; cf. Ex 20,8-11).
É enorme essa formulação, além de enfatizar antes o descanso do que o culto a Deus. Ora, nós sabemos que, em memória da Ressurreição de Cristo, os primeiros cristãos começaram a se reunir no dia depois do sábado, o primeiro da semana, apelidado de domingo justamente por ser consagrado ao Senhor [7]. Por isso, no Novo Testamento, já não se guarda o sábado, mas o domingo [8].
Mas não seria mais adequado que a Igreja Católica se ativesse ao texto sagrado, em vez de inventar fórmulas mnemônicas, isto é, fáceis de guardar na memória? Não. Porque, com a vinda de Cristo, foram abolidas todas as prescrições do Antigo Testamento, exceto as de direito natural [9].
No Antigo Testamento, com efeito, havia prescrições de três naturezas ou ordens distintas. As cerimoniais, ou rituais, não valem para o Novo Testamento. Serviam, na qualidade de imagens e símbolos, como preparação para o Novo, cujo culto foi estabelecido por Nosso Senhor com a instituição dos sacramentos.
Outras eram jurídicas ou judiciais e compunham uma espécie de “Código Civil” dos judeus. Afinal, o povo de Deus, no Antigo Testamento, era um organismo político, fundado numa comunidade de fé e de raça, a fé de Abraão e a raça dele descendente. Eram leis políticas, processuais e administrativas. Também estas foram abolidas, uma vez que o povo da Nova Aliança, isto é, a Igreja, compõe-se de membros de todas as raças, espalhados em todas as nações e pertencentes a diferentes comunidades políticas. Os cristãos estão toto orbe diffusi, espalhados pelo mundo inteiro, de modo que tais leis não têm mais razão de ser.
O terceiro e último tipo de prescrições compreende as de direito natural, ou seja, inscritas na natureza mesma das coisas. O preceito: “Não matar” não precisava estar escrito nos Dez Mandamentos. Ele já está inscrito na natureza humana: matar o inocente é sempre, sem exceção, injusto. É por isso que a Igreja não se apega à letra de um ou de outro texto bíblico em particular. O Decálogo nos foi dado para garantir que saibamos o que, em princípio, deveria ser óbvio.
Com efeito, o pecado original nos leva a distorcer a realidade, e aquilo que a inteligência poderia enxergar por si mesma acaba obscurecido por influência de paixões desordenadas. Se Deus revela a Moisés as “Dez Palavras”, é para garantir que o povo irá segui-las, sem escusas [10]. Nesse caso, a formulação não é o essencial; o importante é a essência do mandamento, o que está na natureza e, estando escrito ou não, é em si mesmo obrigatório.
Assim, o preceito: “Não cometer adultério”, a Igreja o adapta e lhe dá uma formulação mais abrangente: “Não pecar contra castidade”. Afinal, o adultério não é o único pecado de impureza. Proíbe-se o adultério como pecado sexual por antonomásia. Uma vez, porém, que o cristianismo sai do âmbito judaico, torna-se necessário falar dos costumes pagãos. Ora, os judeus tinham uma moral sexual relativamente tranquila e ordenada; mas, quando São Paulo começou a pregar às nações, surgiu a necessidade de abordar assuntos não tratados por Jesus, ao menos não diretamente.
Jesus não falou, por exemplo, de homossexualismo, de lesbianismo e de incesto; e, no entanto, o Apóstolo teve de tratar de tudo isso, além de outras práticas estranhas aos costumes judaicos. São atos imorais, mesmo que não estejam escritos na Bíblia, porque são contrários à natureza da sexualidade humana.
Sim, a Igreja tem uma formulação do Decálogo mais fácil de guardar e clara [11], mas não se trata de “corrigir” nem de “melhorar” a Bíblia. É que estamos aqui no Antigo Testamento, num estágio da revelação ainda preparatório. Na plenitude dos tempos, com a revelação de Cristo, a graça que opera em nossos corações auxilia a razão a captar a Lei não só com clareza, mas com maior profundidade.
Em resumo, a formulação dos Dez Mandamentos ensinada pela Igreja Católica tem o propósito catequético — por isso, é mais curta — de ajudar o fiel a pôr em prática leis escritas, sim, na Bíblia, mas inscritas antes de tudo na natureza das coisas — por isso, não é mera repetição da Escritura.
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