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Christo Nihil Præponere"A nada dar mais valor do que a Cristo"
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Texto do episódio
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Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus
(Mt 16,21-27)

Naquele tempo, Jesus começou a mostrar a seus discípulos que devia ir a Jerusalém e sofrer muito da parte dos anciãos, dos sumos sacerdotes e dos mestres da Lei, e que devia ser morto e ressuscitar no terceiro dia. Então Pedro tomou Jesus à parte e começou a repreendê-lo, dizendo: “Deus não permita tal coisa, Senhor! Que isso nunca te aconteça!”

Jesus, porém, voltou-se para Pedro e disse: “Vai para longe, Satanás! Tu és para mim uma pedra de tropeço, porque não pensas as coisas de Deus, mas sim as coisas dos homens!”

Então Jesus disse aos discípulos: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. Pois, quem quiser salvar a sua vida vai perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la. De fato, que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, mas perder a sua vida? O que poderá alguém dar em troca de sua vida? Porque o Filho do Homem virá na glória do seu Pai, com os seus anjos, e então retribuirá a cada um de acordo com sua conduta”.


Nós estamos no 22.º Domingo do Tempo Comum. O Evangelho deste domingo é continuação do de domingo passado. Você se recorda que no domingo passado Jesus perguntou aos Apóstolos: “E vós quem dizeis que eu sou?”, e São Pedro, então, fez a sua profissão de fé dizendo: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. Jesus exulta de alegria e diz que Pedro é bem-aventurado porque, é claro, o ato de fé de São Pedro não é explicável humanamente: “Não foi a carne nem o sangue, mas o Pai do Céu quem o revelou”.

Eis o Evangelho que nós lemos na semana passada.

Logo em seguida vem o Evangelho de hoje. Jesus começou a mostrar aos discípulos que devia ir a Jerusalém, sofrer muito por parte dos anciãos, dos sumos sacerdotes e dos mestres da Lei e que devia ser morto e ressuscitar ao terceiro dia. Diante desse primeiro anúncio da Paixão, São Pedro, que tinha acabado de reagir de forma maravilhosa, inspirado pelo Espírito Santo, agora é movido por impulsos carnais. São Pedro diz: “Deus não permita tal coisa, Senhor”.

Primeiramente, precisamos notar que São Pedro está fazendo uma oração: “Deus não permita”. É um desejo, um augúrio, mas voltado para Deus: “Avertat a te Deus”, — “Que Deus não o permita”. Porém, embora fosse uma oração piedosa, Jesus reagiu de forma bem dura.

Vejamos a resposta de Jesus a esse desejo, aparentemente bom, de São Pedro. São Pedro está dizendo a Jesus: “Que o Senhor não morra na Cruz”, e a resposta de Jesus a São Pedro é a mais dura e terrível de todo o Evangelho. Em outras passagens, Jesus chama os fariseus de “raça de víboras”. No evangelho de São João, por exemplo, Ele diz claramente que os judeus são “filhos do diabo”. Ora, aqui Jesus não chamou a Pedro “filho do diabo”; chamou-lhe “Satanás”!

Como chegamos a algo tão grave como as palavras que Jesus dirige a Pedro: “Vai para longe, Satanás”, ou: “Afasta-te, Satanás”, — “Vade retro, Satana”? (Talvez tenhamos um paralelo no capítulo 6 de São João, no qual Jesus, falando de Judas, diz: “Eu não vos escolhi a vós, os Doze? No entanto, um de vós é um diabo”.)

É interessante que as palavras mais duras, Jesus as reserva para os Apóstolos. Mas por que Jesus está dizendo palavras tão graves e tão sérias a São Pedro? Exatamente porque São Pedro entendeu quem é Jesus, mas não entendeu por que Ele veio. Jesus é, sim, o Messias, e ao dizer que Jesus é o Messias, São Pedro está professando que Ele é o Filho de Deus encarnado: Ele é homem, o Ungido, mas também é o Filho eterno de Deus.

São Pedro professa a fé perfeitamente, mas não enxerga por que Jesus veio. Com isso, termina destruindo tudo, porque Jesus veio ao mundo “por nós e para nossa salvação”, como o Credo nos diz. A nossa profissão de fé reza assim: “Qui propter nos homines et propter nostram salutem descendit de caelis”, — “Por nós homens e para a nossa salvação…”. Ora, a salvação acontece na Cruz. Então, ao dizer que Jesus não deveria ir a Jerusalém para morrer na Cruz, São Pedro está, digamos assim, querendo impedir a razão de ser do nascimento de Jesus.

O Senhor disse: “O meu alimento é fazer a vontade do meu Pai”. E qual é o alimento de Jesus, isto é, a vontade do Pai? A nossa salvação, que sejamos salvos. Por isso, nós precisamos entender que a Cruz é salvífica. Ela é verdadeiramente caminho de salvação.

Na teoria, parece tudo muito claro; mas, quando pegamos isso e o aplicamos à nossa vida, começamos a enxergar que existe uma tendência, no nosso dia a dia, de fazermos exatamente o que Pedro fez. Nós estamos dispostos a crer em Jesus e dizer: “Jesus, vós sois a razão da minha vida”. No entanto, quando a cruz nos visita de forma concreta, nossa reação é sempre a de Pedro; é sempre um exagero.

Há quem tenha aprendido e não aja mais assim; mas, infelizmente, a maioria das pessoas entrega-se às reclamações: “Eu vou à igreja, sou um bom católico, cumpro todos os meus deveres, por que isso está acontecendo comigo? Que coisa horrível! Por quê? Por que eu?!”

Nós temos de aplicar isso em nossas vidas e entender que a cruz da nossa vida se manifesta no dia a dia. Não estamos falando de cruzes inventadas, mas das cruzes que aí estão, as inevitáveis da vida — coisas que tentamos evitar ou problemas que buscamos resolver, mas sem sucesso —, que nos fazem sentir-nos impotentes, amarrados numa situação crucificante. Eis as cruzes que são para nós salvadoras.

Quando a cruz se manifesta em nossa vida, temos de erguer o coração para o céu e dizer: “Eis-me aqui, Senhor. Eu vim para isso, foi para isso que eu vim. A minha cruz não me atrapalha, a minha cruz é salvadora. Foi para esta hora que eu vim”. Abraçando a cruz, iremos morrer para nós mesmos; e morrendo para nós mesmos, poderemos viver para Deus. Sejamos mais específicos, para que você não fique com as ideias confusas.

Todo mundo sofre. É algo inevitável; os adultos sofrem, as crianças sofrem. Porém, as pessoas imaturas, que não amadureceram na fé, sofrem inutilmente.

É espantoso ver quantas oportunidades maravilhosas as pessoas perdem de crescer espiritualmente — cruzes magníficas, cruzes fantásticas que se manifestam como ocasião divina na vida das pessoas. E perdem essas oportunidades porque sofrem inutilmente, sem fazer da dor um ato de amor e de entrega a Deus.

Então, não é só questão de sofrer. Se o simples ato de sofrer santificasse, estaríamos num planeta de santos. Olhemos para grandes sociedades sofridas como, por exemplo, a sociedade da Europa durante a Segunda Guerra Mundial. Milhões de mortos. Quanto sofrimento! quanta miséria! Mas a Europa ressurgiu da Segunda Guerra Mundial não como um continente mais santo. A Europa ressurgiu da Segunda Guerra Mundial como um continente mais materialista e mais hedonista, à procura de prazer, de uma “alegria” de viver, de uma felicidade material neste mundo. Sofreram, sim; mas poucos aproveitaram o sofrimento para se unir a Jesus.

Olhemos ainda para um continente como a África: fomes, secas, guerras civis, conflitos intestinos em várias nações e etnias, pragas etc. As pessoas sofrem, mas muitos acabam sofrendo inutilmente, porque não aprenderam como a cruz é salvadora.

São Paulo, na Segunda Leitura deste domingo (Rm 12, 1-2), pede pela misericórdia de Deus: “Irmãos, eu vos exorto a vos oferecerdes em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus”. Pegue os sofrimentos da sua vida e transforme-os em amor. Essa é a graça que precisamos pedir a Deus. 

Vamos explicar de outra maneira. Existem dois lugares escatológicos: o Céu e o Inferno. O Céu é um lugar maravilhoso, onde só há amor, sem dor alguma. Ora, é fantástico saber que existe um lugar em que as pessoas vivem uma felicidade perfeitíssima, que vem diretamente de Deus, participando, cada um na sua medida e do seu modo, da glória, da felicidade e da beatitude da própria Santíssima Trindade. No Céu, veremos a felicidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo!

Mas existe outro lugar, o Inferno, onde não há nem um pouquinho de amor e de felicidade. No inferno, só há dor e raiva; e, quanto mais Deus ama Satanás, os seus demônios e os condenados ao Inferno, tanto mais eles o odeiam e sofrem com isso. Por quê? Porque não conseguem ser felizes por causa do grande ódio em que vivem. Então, no Inferno só há dor, não há felicidade.

São dois extremos: no Céu, só há felicidade e nenhuma dor, só há amor e nenhuma dor; no Inferno, só há dor e nenhum amor, nenhuma felicidade. Temos, então, o extremo do amor e o da dor.

Ora, neste mundo, a dor e o amor se encontram. O Evangelho de hoje quer nos revelar que existe algo de salvífico em nós, agraciados pela graça de Cristo, transformarmos nossa dor em amor. É como se Jesus dissesse a Pedro: “Vá-te daqui com esta mentalidade satânica de fugir da dor e da cruz. Mas, se alguém quiser me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me, pois quem quiser salvar a sua vida irá perdê-la, e quem perder a sua vida por causa de mim irá encontrá-la”.

Eis a grande revelação que Jesus quer nos dar neste domingo. Existe, sim, meu irmão, minha irmã, algo de salvífico em, diante das cruzes, sobretudo as inevitáveis da sua vida, inclinar a cabeça a Deus e dizer: “Senhor, que oportunidade de vos amar! Que oportunidade maravilhosa de transformar dor em amor!”

São poucos os que transformam a própria dor em amor, mas há muitos que transformam os seus amores em dores. Essa é a grande escolha desta vida. O que você ama? Você ama a sua família? Seus filhos? Sua esposa? Seu marido? Quem sabe você ama coisas menos nobres… Talvez você ame o seu dinheiro, o seu carro, o seu corpo, a sua saúde. Quem sabe você ama até coisas pecaminosas, como drogas, sexo desregrado, bebida…

Pois bem, se, esquecidos de Deus e do Céu, deixamos de transformar nossa vida, o que acontece? Todos os nossos amores irão se transformar em dor.

É incrível ver a capacidade que as pessoas têm de transformar amores, coisas lindas e maravilhosas, em dores: é o marido que transforma o relacionamento com a esposa em tortura; é a mãe que transforma o relacionamento com os filhos em tortura; são pessoas que transformam o seu relacionamento com o corpo, com a saúde, com comida e bebida em tortura… Por quê? Porque fogem da cruz. Miseravelmente fogem da cruz: “Não! Não quero sofrer, não quero sofrer”, e com isso sofrem ainda mais.

Eis o que Jesus está tentando nos ensinar: “Quem quiser se salvar, vai se perder”. Abracemos a cruz, e seremos salvos. Transformemos a dor em amor. Se a cruz for inevitável, vamos abraçá-la. Ajoelhemo-nos diante da vontade divina de Deus manifesta em nossa vida, beijemos a cruz salvadora e digamos: “Eis-me aqui, Senhor! Eu vim para isso. Foi para isso que eu vim”.

Jesus o está ensinando a Pedro: “Eu, o Filho de Deus encarnado, vim para isso. Eu vim para a minha hora, eu vim para a Cruz. E, deixe-me acrescentar, Pedro: tu também vieste para isso. Não fuja da cruz! Não fuja, diante da primeira empregadinha do sumo sacerdote, negando não somente a mim, mas a ti mesmo, negando a tua vocação e o desígnio eterno”.

Pedro irá aprender o caminho. Apesar de tropeços e quedas, Pedro irá aprender o caminho. Mais tarde, o beatíssimo Pedro irá entregar a vida em Roma, crucificado de cabeça para baixo, seguindo os passos do Senhor: “Feliz és tu, Simão, filho de Jonas!” Completou-se ali a beatitude, ou seja, a bem-aventurança de Pedro, que aprendeu a transformar a dor em amor abraçando a sua cruz.

Conta uma antiga tradição que, estando Pedro já com idade, tendo pregado o Evangelho em Roma, no ano 67, desencadeou-se uma grande perseguição contra os cristãos. Nero começou a perseguir os fiéis e a amarrá-los em estacas, passando-lhes piche pelo corpo e queimando-os vivos como tochas humanas. Nero fez ainda um grande circo perto da colina do Vaticano. Como precisava de mais cristãos para morrer em seus espetáculos nas arenas, começou também a prendê-los.

Diante da perseguição, alguém de boa vontade deve ter aconselhado Pedro: “Pedro, tu és o príncipe dos Apóstolos. Não podemos perder-te. Vai esconder-te à vila de algum amigo”. Pedro então saiu da cidade de Roma, entrou na Via Ápia e começou a caminhar, para fugir da perseguição. Eis então que, ainda na Via Ápia, Pedro depara-se com alguém conhecido. Era Jesus. Pedro viu seu Mestre e Senhor, que subira aos céus havia mais de trinta anos. Que felicidade em ver Jesus e reencontrá-lo!

Pedro, então, alegre e feliz, olha para Jesus; mas, admirado por vê-lo caminhar na direção oposta à sua, perguntou-lhe: “Quo vadis, Domine?”, — “Para onde vais, Senhor?” Jesus respondeu a Pedro, dizendo: “Pedro, vou a Roma morrer novamente pelo meu povo”.

Pedro entendeu perfeitamente: ele devia voltar atrás e ingressar novamente na cidade de Roma para, finalmente, dizer o seu sim — sim último e derradeiro, sim profundo e final —, que lhe deu a bem-aventurança e fez dele o beatíssimo Apóstolo Pedro, porque morreu novamente com Cristo na Cruz. Sim, “novamente” porque as mortes de todos os mártires são, na verdade, uma só morte: a de Cristo; e todas as cruzes são uma só cruz: a Cruz de Cristo, a cruz salvadora.

Por isso, meu irmão, minha irmã, ouçamos o que nos exorta São Paulo na Segunda Leitura: “Pela misericórdia de Deus, oferecei-vos em sacrifício vivo. Não vos conformeis com o mundo, mas transformai-vos”. Nada de mentalidade mundana, de quem foge da cruz. Transformai a vossa mentalidade, “renovando vossa maneira de pensar e de julgar, para que possais distinguir o que é a vontade de Deus, isto é, o que é bom, o que lhe agrada, o que é perfeito” (Rm 12, 2).

COMENTÁRIO

Jesus em Cesaréia de Filipe (Mt 16,13-28; Mc 8,27-39; Lc 9,18-27). — Os sinóticos seguem uma lógica comum. Narrados os milagres e as pregações de Cristo, i.e. as provas de sua missão divina e o núcleo de seu magistério, Mt, Mc e Lc convergem no mesmo ponto: a profissão de fé petrina. Trata-se, para muitos, do momento mais solene do Evangelho, do qual é como o centro e o coração. Três elementos principais compõem o episódio: (I) a confissão de Pedro, (II) a predição da paixão e morte do Senhor, (III) uma exortação à abnegação.

I. A confissão de Pedro (Mt 16,13-20; Mc 8,27ss; Lc 8,18ss). — V. 13s. Como Jesus viesse a Cesaréia de Filipe (antigamente Pânias [1], hoje Banias), aos pés do monte Hermon, na Galauntide superior (a cerca de 45 km da margem setentrional do lago de Tiberíades), depois de passar sozinho a noite em oração, aproximaram-se dele os discípulos (Lc), e, no caminho (Mt), perguntou-lhes que opinião tinham as multidões sobre o Filho de homem. Os discípulos disseram o que ouviram do povo: para alguns, era João Batista, que voltara à vida, como Herodes imaginava (Mt 14,2); para outros, Elias, o precursor do Messias (cf. Ml 4,5s); para outros, Jeremias, muito venerado pelos judeus (cf., e.g., 2Mc 2,1-9; 15,13-16), ou algum dos profetas.

V. 15s. Mas Jesus, que levantara a questão para pôr à prova a fé dos discípulos, continuou a perguntar: E vós quem dizeis que eu sou? Pedro, superando os outros tanto pelo fervor de sua índole como pelo ardor e a firmeza da fé, responde prontamente em nome de todos: Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo. Diz portanto duas coisas: (i) Tu és o Messias esperado pelos judeus e (ii) és de modo especial o Filho (ὁ υἱὸς) de Deus vivo, assim chamado por oposição aos ídolos, “deuses” mortos, i.e. falsos, fabricados por mãos humanas (cf. Sl 113,4ss). — Em Mc e Lc a resposta é mais sucinta: Tu és o Cristo; o Cristo de Deus, por isso afirmaram alguns racionalistas e protestantes liberais, aos quais se juntam poucos católicos, que o texto de Mt diria o mesmo que o de Mc e Lc, como se o Apóstolo houvesse reconhecido apenas a messianidade de Cristo, e não sua divindade [2]. No entanto, devido ao elogio que Jesus faz a Pedro e à expressão o Filho de Deus vivo [3], que em lugar algum é usada como sinônimo de Messias, tal opinião é inadmissível. O contexto impede, com efeito, que as palavras de Pedro equivalham às ditas antes pelos discípulos na barca (Mt 14,33).

Ora, se Pedro reconheceu a filiação divina de Cristo, esta não pode ser senão natural, e não meramente adotiva, dado que o príncipe dos Apóstolos atribui ao Mestre algo que não compete a Elias, a Jeremias nem a nenhum dos profetas, os quais eram, não obstante, filhos de Deus por adoção. Estão de acordo com isso não poucos racionalistas modernos e a maioria dos católicos; daí que os Padres e os teólogos sempre tenham visto nesse trecho um argumento adequado para sustentar e confirmar a divindade de Nosso Senhor.

V. 17. Respondendo Jesus, disse-lhe: Bem-aventurado és, Simão Bar-Jona, porque não foi a carne e o sangue (σὰρξ καὶ αἷμα) que te revelaram etc. Cristo começa aprovando plenamente as palavras de Pedro e declarando-o bem-aventurado por ter-se aberto com docilidade e fé à revelação do Pai. — Tipicamente hebr., a locução carne e sangue (וָדָם בָּשָֹר) designa um ser vivo por referência a um duplo elemento, um passivo (carne) e outro ativo (sangue). Trata-se de uma circunlocução para referir-se ao homem do ponto de vista de sua fragilidade, sobretudo quando é contraposto a Deus, como aqui (cf., e.g., 1Cor 15,50; Gl 1,16; Ef 6,12); logo, não foi a natureza, a força do intelecto ou dos afetos humanos nem homem algum (cf. Gl 1,16) que te revelaram isto, i.e. que te inspiraram estas palavras a meu respeito, mas foi o meu Pai, que está nos céus, quem te manifestou este mistério por uma luz sobrenatural.

N.B. — São chamados na Escritura felizes ou bem-aventurados (gr. μακάριοι, lt. beati) os que recebem algum benefício especial de Deus ou uma graça de todo imerecida, especialmente se tem relação com a vida eterna. — Note-se o paralelismo entre o macarismo de Jesus e o de Isabel, movida pelo Espírito Santo quando da visita da Virgem deípara: Bem-aventurado és, Simão e Bem-aventurada és tu pelo mesmo motivo fundamental, a saber: a fé sobrenatural de um e de outra (cf. Lc 1,45).

V. 18a. E eu, de minha parte, digo-te que tu és Pedro etc. Em quatro vv. Jesus confere a Pedro: 1.º um novo nome; 2.º o ser o fundamento da Igreja; 3.º as chaves do reino; 4.º e plena potestade de governo.

1.º Tu és Pedro. O nome que já antes prometera a Simão, filho de Jonas (Jo 1,42), Jesus agora o confirma agora e explica: doravante, Simão será chamado Pedro. Petrus é transliteração em lt. do nome gr. Πέτρος, versão literal, por sua vez, do aram. Kêphâ (כּיפָא) = rocha, o qual, sem dúvida, deve ter sido usado por Cristo: Tu és Kêphâ [4]. A razão da mudança de nome funda-se no cargo confiado a Simão

2.º E sobre esta pedra edificarei a minha Igreja (μου τὴν ἐκκλησίαν, com art. def., i.e. a minha única Igreja). — Para captar a força da expressão, atente-se a que o Senhor usou aqui de certo jogo de palavras, que nem em lt. nem em gr. se pode exprimir adequadamente: Tu és Kêphâ, e sobre este Kêphâ edificarei etc. [5], o que é o mesmo que dizer: e sobre ti, a quem chamei pedra, ou: e sobre esta pedra que tu és edificarei etc. Noutras palavras: Hei de constituir-te fundamento do edifício espiritual que pretendo erigir. Cristo, por conseguinte, é como um arquiteto que planeja a construção de uma casa, e Simão, filho de Jonas, será a pedra sobre a qual o edifício todo estará apoiado. Eis por que lhe convém o nome Kêphâ. — Conclusão teológica: Ora, se o fundamento está para o edifício, a saber: como princípio de sustentação, estabilidade e continuidade (cf. Mt 7,24s; Lc 6,48), assim como Pedro está para a Igreja, e se o princípio de sustentação etc. na sociedade humana (com a qual a Igreja, em sua constituição, guarda estreita analogia, assim como a ordem sobrenatural é análoga à natural) não é senão o exercício da legítima autoridade, então é evidente que essas palavras outorgam a Pedro o principado da Igreja, i.e. um cargo de chefia e governo [6].

N.B. — (a) A metáfora edificar a Igreja tem sentido óbvio e será utilizada mais tarde por São Paulo (cf., e.g., 1Cor 3,9-17; Ef 2,19-22 etc.). Parece derivar das passagens do AT em que o povo israelita é chamado casa de Israel, casa de Deus etc. — (b) A palavra ecclesia (ἐκκλησία), bem como o sinônimo synagoga (ambas equivalentes ao hebr. qāhāl), são utilizadas no AT para significar o conjunto, a assembleia, a congregação etc. dos fiéis judeus (cf., entre outros, Nm 16,3; 20,4; Dt 23,2s; Sl 21,23.26; 34,18 etc.). — (c) No entanto, o v. 19 deixará claro que, a partir de agora, a ecclesia já não se limita à carne e ao sangue judeu, i.e. ao povo de Israel, senão que se estende à terra inteira, que passa a estar unida, como um só corpo ou família, aos céus, de onde Deus confirma tudo o que, no exercício de sua função, decidir a suprema autoridade eclesiástica.

Observação: A Pedro compete um duplo primado: (i) um de jurisdição sobre toda a Igreja, o qual se funda, por sua vez, em (ii) um de fé divina, por ter sido ele o primeiro dos Apóstolos a professar a divindade de Jesus Cristo. Daí o listarem os evangelistas como o primeiro entre os Apóstolos: πρῶτος Σίμων ὁ λεγόμενος Πέτρος, o primeiro, Simão, chamado Pedro (Mt 10,2). Primeiro em honra e poder, por ter sido a primeira pedra e o sujeito do primeiro ato de fé a partir do qual o Senhor edificaria o novo Israel: Sobre esta fé etc. Donde se segue que o vínculo primeiro e fundamental que nos faz membros da Igreja é a fé, mas não qualquer uma: é a mesma fé, católica e apostólica, professada por Pedro, graças à iluminação interior do Pai celeste.

V. 18b. É uma consequência das palavras anteriores: Pedro será o fundamento da Igreja, razão de sua firmíssima estabilidade, e por isso as portas do inferno não prevalecerão (κατισχύσουσιν) contra ela (καὶ πύλαι ᾅδου οὐ κατισχύσουσιν αὐτῆς). — Porta é uma metonímia típica do hebr. para significar cidade (cf., e.g., Gn 22,17; 24,60; Dt 5,14; Sl 86,2). — Inferno (Ἅδης) corresponde aqui ao vocábulo sheol e significa domicílio dos mortos, i.e. o lugar onde ficavam detidas as almas dos defuntos, que ainda não gozavam a visão de Deus; mas, na época de Cristo, quando a diferente sorte dos bons e dos maus já fora mais bem revelada, servia para designar também o cárcere em que os condenados são punidos com eternos suplícios (cf. Lc 8,31; 16,22ss; Mt 25,41; Ap 1,18; 20,13 etc.), o qual é representado várias vezes como um poder ou reino contrário a Deus (cf. 1Pd 5,8; Ap 9,1; 12,7 etc.). — Disto decorrem duas interpretações possíveis: (i) portas do inferno = o poder da morte (i.e. a própria morte, como em Is 38,10; Sl 9,15; 106,18; Jó 38,17, etc.), embora seja mais forte do que tudo neste mundo, não será todavia mais forte do que a Igreja (noutras palavras, a Igreja é imortal e jamais perecerá); (ii) portas do inferno = os poderes diabólicos ou das trevas (cf. Lc 22,53), que levam as almas para o inferno, nunca triunfarão contra a Igreja nem farão cessar sua obra salvífica, continuação da mesma obra de Cristo [7]. — É preferível a segunda interpretação por conta do verbo κατισχύω (= sobrepujar, impor-se a, sujeitar etc.), que supõe tentativas hostis positivas de destruir a Igreja.

V. 19. 3.º Explica com outra imagem o ofício de Pedro: E eu te darei as chaves do reino dos céus. Ora, aquele que detém as chaves da casa ou da cidade, segundo o uso bíblico, não é simples porteiro, mas ecônomo (οἰκονόμος) ou administrador da casa, i.e. o responsável por dispensar à família do senhor ou aos súditos do rei o que lhes for necessário (cf. Is 22,22; Ap 3,7ss etc.) [8]. Desfeita a metáfora, o sentido é: Eu te darei a suprema administração do reino. Pedro será na Igreja [9] o ecônomo ou ministro régio por quem tudo será dirigido.

4.º Até onde se estende tal poder administrativo, declara-se com outra imagem: Tudo o que ligares na terra etc., locução que, embora em seu uso rabínico não signifique nada mais que declarar algo lícito ou ilícito, não se restringe aqui ao papel de um jurisconsulto ou de um rabino, senão que, por força do contexto, se aproxima mais do sentido grego das palavras, ou seja, significa a potestade legislativa suprema (a ninguém subordinada) e verdadeiramente universal (ὃ ἐάν = tudo o que, tudo quanto, qualquer coisa etc.). Ora, tal poder não seria universal (sobre coisas e sobre homens) a menos que incluísse o poder não só disciplinar e doutrinal, mas inclusive o de perdoar pecados. Logo, Cristo promete que tudo o que Pedro, enquanto administrador do reino dos céus, decretar ou decidir, estará confirmado aos olhos de Deus. Noutras palavras, Cristo lhe confere um verdadeiro poder legislativo na Igreja e, por conseguinte, a autoridade de obrigar por força ao cumprimento de suas leis.

O Senhor proclama, pois, e ilustra o primado de Pedro e seus sucessores no pontificado com uma tríplice metáfora ou símbolo (da pedra, das chaves e da faculdade de ligar e desligar). Essa doutrina, embora claramente atestada na Escritura, é todavia impugnada pelos cismáticos orientais. Mas consta historicamente que também os bizantinos, até a época do cisma de Fócio, i.e. durante os oito primeiros sécs. da história eclesiástica, criam no primado jurisdicional dos pontífices romanos enquanto sucessores de Pedro. São Teodoro Estudita, e.g., em carta ao papa Leão III (cf. MG 99,1155), saúda-o como sucessor do príncipe dos Apóstolos (διάδοχος τοῦ τῶν ἀποστόλων κορυφαίου), e afirma em outra epístola (Ad Pasc.: MG 99,1017) que o romano pontífice é o pastor supremo da Igreja debaixo do céu (ἀρχιποίμην τῆς ὑπ’ οὐρανὸν Ἐκκλεσίας). Ninguém menos que São Metódio, apóstolo dos eslavos, escreve em seu Νομοκάνων contra a teoria da translação do primado da antiga para a “nova Roma” (Constantinopla): “Não é verdade que foram os antigos Padres que atribuíram à velha Roma um primado para que fosse cabeça do império, senão que este primado lhe vem do alto, pela graça divina. Pois foi por causa do grau de sua fé que o príncipe dos Apóstolos, Pedro, mereceu ouvir estas palavras da boca mesma de Nosso Senhor Jesus Cristo: Pedro, tu me amas? Apascenta as minhas ovelhas. Eis por que obteve entre os prelados o principal lugar e a primeira sé” (cf. Jugie, Theologia dogmatica, 1, [Paris 1926] 111s).

V. 20. Após a confissão de Pedro, Jesus ordenou aos discípulos que não dissessem a ninguém que ele era o Cristo, i.e. o Filho de Deus vivo, como Pedro acabara de professar abertamente, já que os Apóstolos não tinham ainda recebido a luz do Espírito Santo para anunciar esse dogma, e porque, como a pregação apostólica só deveria começar depois da paixão e morte de Cristo, acabariam, mais do que propagar a fé, por causar escândalo e pôr-se a si mesmos em perigo, caso evangelizassem antes da hora. É o que parece dar a entender Lc (9,21s): Ordenou-lhes energicamente que não o dissessem (o que Pedro acabara de confessar) a ninguém, e diz a causa: Ele acrescentou: É neces­sário que o Filho de homem padeça muitas coisas etc.

II. Primeiro anúncio da paixão (Mt 16,21ss; Mc 8,31ss; Lc 9,22). — V. 21. Até agora, o Senhor nada ensinara aos Apóstolos, exceto por alusões veladas (cf. Jo 2,19; 3,14s; Mt 9,15), a respeito de seu destino; desde então (ἀπὸ τότε), i.e. desde o tempo em que viu os discípulos cientes de sua divindade (não necessariamente “logo após” a cena anterior), Jesus começou a manifestar-lhes (Mc: abertamente, παρρησίᾳ) que era preciso, segundo a vontade divina muitas vezes manifestada nos vaticínios do AT, que ele, o Filho de homem, sofresse muitas tribulações da parte dos judeus, nominalmente: dos anciãos, escribas e chefes dos sacerdotes, fosse rejeitado por eles (Mc e Lc: ἀποκτανθῆναι), que por fim o condenariam à morte, e ao terceiro dia ressuscitasse dentre os mortos. Contempla-se de perto a imagem do Servo sofredor de Javé (ver Is 53).

V. 22. O anúncio desse drástico desfecho não pode não ter soado incompreensível aos Apóstolos, imbuídos, como o resto do povo, das mesmas ideias vulgares acerca de um Messias glorioso, motivo por que é no mínimo duvidoso que eles tenham entendido bem as palavras do Senhor; talvez pensassem que deveriam interpretá-las em sentido figurado (cf. Mc 9,21; Lc 9,45), pois sabiam que o Mestre falava às vezes por parábolas. Pedro, no entanto, sem dúvida as entendeu em sentido próprio, ao menos quanto às perseguições dos judeus e às tentativas de homicídio. Inconformado, pois, com a sorte do Mestre, tomou-o à parte (Mc 8,32), ou para o dissuadir mais facilmente, ou porque não se atrevia a falar-lhe em termos mais duros na frente dos outros, começou a interpelá-lo e protes­tar, i.e. a falar com veemência, mas com afeto de quem ama: Que Deus não permita isso (em gr., na verdade, ἵλεώς σοι = Que Deus te seja propício), Senhor! Isso não te acontecerá!

V. 23. Ele, voltando-se, i.e. olhando indignado para Pedro, ou virando-lhe o rosto em sinal de indignação, ou, segundo outros, voltando-se para os demais discípulos, disse a Pedro: Afasta-te, Satanás, i.e. sai daqui, adversário, tu és para mim um escândalo, i.e. tentas impedir-me de cumprir a vontade divina; teus pensamentos não são de Deus (οὐ φρονεῖς τὰ τοῦ Θεοῦ = não compreendes as coisas de Deus), quer dizer, a disposição divina para a redenção do mundo, mas as dos homens, que aborrecem tudo o que repugna e contraria a natureza; são ainda demasiado humanas e carnais as ideias que tens do Messias.

Observação: Assim como a encarnação do Filho de Deus se ordenou de fato à redenção do gênero humano, pela qual Cristo mereceu sua ressurreição e glorificação, assim também, na narrativa evangélica, à profissão petrina da divindade de Cristo se segue o anúncio da paixão e a este, pouco depois, a cena da Transfiguração, como se por três etapas escalonadas quisesse Cristo propor os três capítulos principais da fé cristológica, desde a sua vinda de junto do Pai até o seu retorno, tendo atravessado o vale da morte, à glória dos céus: 1.º Encarnação: “Creio em Jesus Cristo, seu único Filho, Nosso Senhor, que foi concebido pelo poder do Espírito Santo”; 2;.º Paixão: “Padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado”; 3.º Glorificação: “Ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos céus, está sentado à direita de Deus Pai todo-poderoso”.

III. Exortação à abnegação (Mt 16,24-28; Mc 8,35-39; Lc 9,23-27). — Por ser necessário que os discípulos tomem parte na sorte do Mestre, com boa lógica os três sinóticos concluem a predição da paixão com algumas graves advertências sobre a necessidade de renunciar a si mesmo e carregar a cruz todos os dias. É lícito questionar, em todo caso, se foram ditas nestas mesmas circunstâncias, visto que em Mc são dirigidas explicitamente às multidões.

V. 24 (= Mc 8,34). E, chamando a si o povo com seus discípulos, disse-lhes (em Lc: a todos): Se alguém me quer seguir (ὀπίσω μου ἀκολουθεῖν), i.e. ser verdadeiro discípulo meu, negue-se (ἀπαρνησάσθω = lit. ignore, desconheça, cf. Is 31,7; Lc 12,9; 22,34) a si mesmo, i.e. trate-se como se fora um estranho, esqueça-se de si, prefira-me a seus próprios interesses, não tenha em conta alguma a si e todas as suas coisas; tome a sua cruz: os condenados ao suplício da cruz tinham de carregar sozinhos o patíbulo ou mesmo a cruz inteira, e siga-me; do mesmo modo, o discípulo de Cristo deve suportar dia após dia (Lc: καθ’ ἡμέραν), com paciência e fortaleza, as adversidades e injustiças, e dessa forma siga-me até a morte, i.e. persevere até o fim nessas disposições. A locução de Mt e Mc tome a sua cruz pode ser lida em sentido próprio = siga-me até o suplício, i.e. mantenha-se fiel até o martírio.

V. 25 (= Mc 8,35). É uma repetição de Mt 10,39: O que se prende à sua alma (= a si mesmo), i.e. o que se livra da morte negando a Cristo, ou também (εὑρών, aoristo gnômico incoativo = o que buscar…), como em Lc: o que procurar [salvar] a sua alma (= a si mesmo) da morte ou livrar-se de algum prejuízo temporal, perdê-la-á, i.e. perderá a si mesmo (deitará a perder a vida eterna, ou: também nesta vida); mas, pelo contrário, quem se expõe a um perigo para a vida material por meu amor, por causa de mim ou do meu Evangelho (Mc), achá-la-á, gozará da vida verdadeiramente feliz. É um λόγιον tão familiar a Cristo, que se encontra seis vezes nos evangelhos (Mt 10,39; 16,25; Mc 8,35; Lc 9,24; 17,33; Jo 12,25).

Notas

  1. Assim se chamava o lugar por causa do deus Pã, a quem era especialmente dedicado.
  2. Que em Marcos e Lucas não se leiam as palavras ‘o Filho do Deus vivo’ nada prova contra a autenticidade de Mt 16,16ss nem contra o sentido cristológico da confissão de Pedro em Macos e Lucas. (a) Com efeito, é sabido que nenhum dos evangelistas pretendia narrar todos os ditos e feitos de Cristo, e que há muitas coisas registradas apenas por Mateus. — (b) Tampouco faltam razões para que o segundo e o terceiro evangelhos omitam essas palavras: (α) por um lado, é consentâneo que Pedro, em sua pregação, tenha calado por humildade um fato que o enobrecia, e como Marcos quis refletir fielmente a catequese dele, não é de estranhar que em seu evangelho relate o episódio em termos gerais; (β) por outro lado, visto que o terceiro evangelho parece depender em muitas coisas da narração de Marcos, é natural que Lucas tenha recebido o diálogo entre Cristo e Pedro de forma ‘incompleta’, i.e., abreviada; (γ) por último, ainda que se admita a hipótese de uma interpolação no texto de Mateus, ainda ficaria sem explicação: (i) por que ela ocorreu apenas no primeiro evangelho, e não nos demais, (ii) como os cristãos, durantes sécs., toleraram sem qualquer oposição que a igreja romana adulterasse o Texto sagrado em matéria tão importante, a saber: a própria estrutura hierárquico-monárquica da Igreja, (iii) e o motivo de Simão ter recebido o nome de Pedro, atestado tanto em Marcos (cf. 3,6) como em Lucas (cf. 6,14).
  3. São João Crisóstomo (MG 58,533): ‘Se Pedro não o [Jesus] tivesse verdadeiramente confessado como gerado pelo próprio Pai, não seria isto obra de uma revelação; se o considerasse um dos muitos [profetas, filhos de Deus por adoção], não seria isto digno de bem-aventurança. Com efeito, já antes disseram os que estavam na barca depois da tempestades: Este é verdadeiramente o Filho de Deus (Mt 14,33), mas nem por isso foram chamados bem-aventurados, embora tenham dito a verdade. Logo, não confessaram o Filho como Pedro o confessou’.
  4. Alguns autores (e.g., *Strack–Billerbeck I, p. 731s) opinam que Jesus, falando em aram., teria usado o nome Petros. No entanto, já nas primeiras comunidades cristãs era comum usar o nome Cephas para referir-se ao príncipe dos Apóstolos (cf. 1Cor 1,12; 2,22; 9,5; 15,5; Gl 1,18; 2,9; 11,14).
  5. Segundo Burney, Jesus teria dito em aram: ‘We amarana lak: de ’att hû kêphâ, we ‘al hāden kêphâ ’ebn’e liknishti’, o que equivale a: ‘Eu te digo: tu és rocha, e sobre esta rocha edificarei a minha Igreja’.
  6. Houve entre os Padres quem interpretasse essas palavras de Cristo aplicando-as ora aos Apóstolos e bispos em geral, ora à fé (mas não à pessoa) de Pedro, ora ao próprio Cristo. Resp.: Já São Roberto Belarmino fez notar que essa interpretação é proposta apenas em exposições morais do Evangelho: quando expõem ex professo, i.e., dogmaticamente essa passagem, todos dizem que se trata da pessoa de Pedro. — Os protestantes em geral sustentam que as palavras não se referem a Pedro, mas a Cristo, que se teria indicado a si mesmo (‘sobre esta pedra’) por algum gesto ou sinal; para outros, referem-se não à pessoa mas à de Pedro, por isso se aplicariam tanto a ele quanto aos outros Apóstolos, em cujo nome se pronunciou. Resp.: Embora seja verossímil que Pedro tenha querido responder por si e pelos outros, Cristo se dirige única e expressamente a ele, apesar de ter interrogado a todos: Bem-aventurado és, Simão, filho de Jonas etc. Jesus fala da fé de Pedro como da causa pela qual (e não como do sujeito ao qual) concederá a graça do pontificado. Além disso, é perverter o texto com um absurdo e contrassenso dizer que algo é ‘construído’ sobre a qualidade de outrem. Conquanto a fé seja, sim, por certo ângulo, o fundamento da Igreja, as palavras de Cristo neste contexto designam in recto o fundamento visível dela (ἐπὶ ταύτῃ τῇ πέτρᾳ), e só in obliquo o seu fundamento espiritual. — Tampouco é problema para o dogma católico que em Marcos e Lucas não se leiam as palavras da instituição petrina: E sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, pelas mesmas razões apresentadas acima, na nota 2.
  7. M. J. Lagrange, Évangile selon saint Matthieu. 2.ª ed., Paris, 1923, p. 326: ‘É pois a luta de um edifício, que é o império do mal, contra a Igreja, que é a casa de Cristo. Satã não é mencionado nem designado diretamente, nem mesmo os poderes infernais. Mas se as portas são atuantes, é porque representam a cidade [do mal, de Satã, dos poderes infernais]’.
  8. As chaves não são aqui símbolo da ciência (como em alguns lugares do Texto sagrado, cf. Lc 11,51; 24,32), por isso não se promete a Pedro uma autoridade meramente doutrinal. Com efeito, ‘a função de mordomo ou superintendente descrita por Isaías era o mais alto cargo da corte: o mordomo tem a chave do palácio, cabe-lhe permitir ou proibir a entrada, e tudo na casa real está sujeito à sua administração’ (Médibielle, p. 579).
  9. O ‘reino dos céus’ deste inciso equivale à ‘Igreja’ do inciso anterior (cf. ‘tudo o que ligares sobre a terra…’).

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