Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus
(Mt 5,38-48)
Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos: “Vós ouvistes o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente!’ Eu, porém, vos digo: Não enfrenteis quem é malvado! Pelo contrário, se alguém te dá um tapa na face direita, oferece-lhe também a esquerda! Se alguém quiser abrir um processo para tomar a tua túnica, dá-lhe também o manto! Se alguém te forçar a andar um quilômetro, caminha dois com ele! Dá a quem te pedir e não vires as costas a quem te pede emprestado. Vós ouvistes o que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo!’ Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem! Assim, vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o sol sobre maus e bons, e faz cair a chuva sobre justos e injustos. Porque, se amais somente aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Os cobradores de impostos não fazem a mesma coisa? E se saudais somente os vossos irmãos, o que fazeis de extraordinário? Os pagãos não fazem a mesma coisa? Portanto, sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito!”
Neste domingo, 7.º do Tempo Comum, o Evangelho dá continuidade ao Sermão da Montanha. Semana passada, Jesus dissera: “Não vim abolir a Lei, mas levá-la à plenitude”; em seguida, começou a fazer uma série de oposições: “Ouvistes o que foi dito: Não cometerás adultério; eu, porém, vos digo…”. Assim também no Evangelho de hoje. Eu quisera, no entanto, centrar-me hoje num detalhe: o amor ao inimigo, assunto suficiente para toda uma meditação.
Eis o que nos diz o Evangelho : “Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo; eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem”. Santo Tomás de Aquino observa que a citação feita por Jesus não se encontra em lugar algum da Bíblia. O “amarás o teu próximo”, sim, está presente no Antigo Testamento, mas em nenhum lugar se acha escrito: “Odiarás o teu inimigo”.
Ora, se não existe um preceito de ódio ao inimigo, de onde Jesus o tirou? Santo Tomás sustenta que Jesus está se referindo, provavelmente, ao modo como interpretavam o Antigo Testamento os judeus da época, para os quais o amor que Deus pede que tenhamos ao próximo estivesse restrito a uma categoria determinada de pessoas. Mas não é isso o que se lê no Antigo Testamento.
Sim, há incontáveis textos sobre a batalha contra os que se opõem a Deus. Vejam-se, por exemplo, os chamados salmos imprecatórios, excluídos aliás da Liturgia das Horas, dada a dificuldade que muitos têm de os interpretar em sentido cristão. Nos salmos 57, 82 e 108, o orante pede, entre outras coisas, que o inimigo seja amaldiçoado, que sua mulher fique viúva e seus filhos, órfãos; que seja destruído todo o seu patrimônio, e até a sua oração se transforme em um pecado.
Ora, é evidente que salmos desse teor não pretendem ensinar o povo eleito a odiar outros seres humanos. A interpretação verdadeira dos salmos não pode depender exclusivamente dos três acima citados, mas deve levar em conta o saltério inteiro, cuja ideia de fundo não é senão essa: vivemos em batalha espiritual, e os nossos verdadeiros inimigos são Satanás e seus demônios. É a essa luz que devem ser lidos os salmos imprecatórios. Obviamente, o inimigo de que fala Jesus no Evangelho de hoje não é o diabo. Os demônios, obstinados eternamente no mal, são inimigos de Deus e da Igreja e não podem ser amados. Logo, o inimigo a quem temos de amar, segundo a doutrina evangélica, são os homens que nos perseguem e fazem mal.
Mas como, no fim das contas, amar o inimigo? Evangelho é boa-nova, isto é, boa notícia; mas exigir que se ame o inimigo não parece, pelo contrário, uma coisa insuportável, um fardo até mais pesado que o da antiga Lei? Jesus não estará “pesando” a mão, impondo-nos a todos algo possível unicamente a heróis?
É G. K.Chesterton quem nos dá a esse respeito uma luz bastante prática. Em 1910, num artigo de 16 de julho para o jornal Illustrated London News, Chesterton escrevia: “The Bible tells us to love our neighbors, and also to love our enemies”, “A Bíblia nos manda amar os nossos semelhantes, e também amar os nossos inimigos”, “probably because they are generally the same people”, “provavelmente porque eles, por via de regra, são as mesmas pessoas”.
Sim, dependendo do momento do dia ou do dia da semana, quem, antes era próximo, mais tarde se torna inimigo, e vice-versa. Pois todos estamos marcados pelo pecado original, o que significa que a nossa capacidade de enxergar a verdade, apesar de íntegra, está perturbada, sobretudo por influência de emoções desordenadas. Mordidos pela serpente, todos sentimos raiva, e a raiva distorce a nossa visão das coisas.
Nada nos cega mais do que a ira, problema com que sempre teremos de lidar. Às vezes a raiva é tão grande, que até a vista se escurece, como se a luz de repente se apagasse. Sim, a raiva cega, às vezes fisicamente, mas sempre espiritualmente. Tomados por ela, deixamos de ver o outro como um semelhante e passamos a ver nele somente um inimigo. Já não vemos no outro alguém como nós, apenas mais um obstáculo a ser eliminado, antagonizado, destruído.
Quantas vezes já nos sucedeu fazer o que não devíamos só porque o sangue nos fervia nas veias!… Mais tarde, despertos da desordem passional, caímos em nós mesmos: “Nossa! O que fui fazer? Não precisava ter feito isso. Perdi o controle”. Precisamos nos dar conta de que não somos imaculados.
Somos, isso sim, náufragos de uma tragédia. Estamos em alto-mar num pequeno bote salva-vidas. Naufragamos no pecado original, o navio afundou. Nossa situação é precária; queremos fazer o bem, até mesmo ser santos, mas algo há sempre a nos puxar para baixo, em direção ao que não quiséramos fazer. Consequências e feridas do pecado original.
No princípio, quando Deus desceu a passear no jardim à hora da brisa da tarde, não encontrou Adão, escondido atrás de um arbusto porque ouvira os passos do Senhor. Essa é a primeira consequência: o homem passa a ter medo de Deus. Ora, quem é o nosso verdadeiro inimigo? A serpente. Eva, porém, tratou-a como amiga, ao lhe dar ouvidos; de repente, Deus vem conversar com o primeiro casal, mas eles se escondem. Ali começa uma briga infernal: “Quem te disse que estás nu?”. Ele responde: “A mulher que tu me deste”. Adão, com uma só frase, comete duas ofensas: uma contra Deus, outra contra o próximo. Eis a distorção da alma humana ferida pelo pecado original.
Qual é a cura que Jesus nos apresenta?
O amor ao inimigo. Não é um peso; pelo contrário, é um remédio, um bálsamo, uma maravilha. Por quê? Porque quem não aprende a amar os inimigos não consegue amar ninguém. Afinal de contas, em algum momento, todo o mundo a quem se ama, ou pelo menos se devera amar, é visto como inimigo. Tal é a força do pecado original em nós.
Você ama a Deus? É claro que sim. No entanto, quando a dificuldade lhe bate às portas, você esperneia e diz: “Onde está Deus nessa hora?” Passada a raiva, você se põe a rezar, por exemplo, um Pai-nosso; mas assim que chega ao pedido: “Seja feita a vossa vontade”, parece que a picada da serpente lhe trava a língua!
Temos medo da vontade de Deus. Mas o problema não está na vontade dele, está em nós, que, por medo dela, nos escondemos atrás do arbusto, assim que ouvimos os passos do Senhor. Sabemos que o primeiro Mandamento reza: “Amar a Deus sobre todas as coisas”, e, no entanto, que medo sentimos de o amar em certas circunstâncias, especialmente nas que nos parecem mais desfavoráveis!…
O ódio carnal é, de fato, muitas vezes inevitável. Trata-se daquela desordem que surge espontânea dentro de nós. É, por exemplo, a raiva da criança de quatro anos que, frustrada, quebra um brinquedo. É uma raiva irracional, um ódio carnal, que em uma criança de quatro anos não é ainda pecado, mas mera desordem.
A razão é que uma criança tão pequena não tem advertência nem liberdade plena; falta-lhe juízo, em linguagem popular. Em linguagem mais “técnica”, o que nela esperneia é o que há de primitivo no cérebro. O pecado não está em sentir, mas em consentir.
Nossa irritabilidade se ativa contra as pessoas a quem mais deveríamos amar. Sentimos raiva de Deus, raiva dos amigos, raiva dos pais, raiva dos irmãos, raiva dos filhos… Nesses momentos em que a carne parece rebelar-se, Jesus nos diz: “Amai vossos inimigos”. Está difícil? Então supliquemos: “Vinde, ó Deus, em meu auxílio. Socorrei-me sem demora”, e peçamos ajuda ao nosso anjo da guarda e à Virgem Maria.
Por quê? Porque Jesus nos amou quando éramos seus inimigos. Eis o remédio, eis o bálsamo da nossa ferida. O evangelho de São Lucas nos diz que, enquanto era crucificado, o Senhor rezava pelos algozes: “Pai, perdoai-os, eles não sabem o que fazem”. Crucificado e advogado dos crucificadores! Ao invés de ser um satã, isto é, um acusador, Jesus reza por seus inimigos. Ao malfeitor que estava ao seu lado, homem de vida desregrada e pecaminosa, disse-lhe o Senhor: “Ainda hoje estarás comigo no paraíso”, graças à fé e ao arrependimento que aquele ladrão manifestou.
Que maravilha é o Evangelho do amor ao inimigo! Quando éramos inimigos de Deus, Ele nos amou. Jesus intercedeu por nós, que o crucificamos com nossos pecados. Ele reza por nós, dizendo: “Pai, perdoai-os, eles não sabem o que fazem”. Jesus é nosso advogado, nosso paráclito. Como diz a Primeira Carta de São João: “Se o teu coração te acusa, Deus é maior que o teu coração” (1 Jo 3, 20). Que maravilha saber que Jesus nos amou quando ainda éramos seus inimigos!
Na prática, como responder ao mandamento de Jesus? Alguém nos ofendeu, mas estamos com dificuldade para lhe perdoar? Esqueçamos por um momento o ofensor e nos dirijamos a Cristo: “Jesus, está doendo. A ofensa que sofri foi grave, mas vós, Senhor, me perdoastes ofensas muito maiores, porque eu perdi o Céu e mereci o Inferno com o meu pecado. Por isso, Senhor, porque recebi de vós um amor infinito, por honra e gratidão ao vosso perdão, também eu perdoarei”.
Sim, a gratidão pelo perdão recebido de Deus nos leva a perdoar aos nossos inimigos. Se não perdoamos, é porque somos filhos ingratos. Mas o Senhor nos manda: “Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito”. E acrescenta: “Sede misericordiosos como vosso Pai celeste é misericordioso”. É assim que podemos e devemos viver este Evangelho maravilhoso, que não é um fardo, mas um remédio, um bálsamo, um alívio.
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COMENTÁRIO EXEGÉTICO
Amor aos inimigos (Mt 5,43-48). — V. 43. A Lei mandava, de fato, amar o próximo (Lv 19,18), mas por próximo (hebr. רֵעַ, amigo, companheiro) entendia-se alguém da mesma tribo ou nação, i.e., de mesma origem e religião (israelítica), como se vê pelo contexto. Isso é confirmado por ditos rabínicos acerca de Lv 19,18: “[Amarás] o próximo, não [porém] os outros”, i.e., os estrangeiros; “o próximo, mas não os samaritanos, os estrangeiros, os prosélitos tôshâbh [i.e., os não conversos]”. Cf. Mekhilta 21,14.35 etc., apud *Strack–Billerbeck, Kommentar…, I 354) [1]. A segunda parte, odiarás o teu inimigo, i.e., os estrangeiros, os não judeus etc., não consta da Lei nem de outros escritos, mas parece ser um corolário prático ou ainda uma glosa rabínica; quando menos, exprime com exatidão o espírito dos judeus da época.
Esta consequência (glosa) e este espírito teriam sido paulatinamente deduzidos do preceito da Lei sobre a destruição de nações estrangeiras (cf. Ex 17,16; Dt 7,2; 20,13-18; 23,4-7; 25,17ss; Nm 34,52.55; 1Sm 15,3 etc.); a inimizade com os gentios converteu-se assim em ódio a todo forasteiro. Além disso, várias passagens do AT parecem respirar vingança e ódio, quer nacional quer religioso (cf. 1Rs 2,8s; Jr 18,19ss; Sl 108 [109] etc.). Tais sentimentos foram alimentados, sobretudo na época dos Macabeus, por contínuos conflitos pro aris et focis. De fato, os judeus tanto na prática como na doutrina tinham ódio encarniçado a qualquer estranho. São célebres neste sentido as palavras de Tácito: “Entre eles, a fidelidade é inquebrantável e rápida a misericórdia, mas contra os de fora impera um ódio hostil” (Hist. 5; cf. Flávio Josefo, Antiq. XI 6, 5; Cícero, Pro Flacco 28) [2]. Além disso, a Mishna recomenda com frequência ter ódio aos israelitas infiéis, aos samaritanos, aos hereges, aos publicanos, aos ammê ha-’ares etc. Com toda razão Senhor podia dizer: Ouvistes o que foi dito… odiarás (= é-te lícito odiar) o teu inimigo [3].
V. 44. (cf. Lc 6,27s.35) Cristo aperfeiçoa o preceito da Lei e corrige a interpretação que se lhe dera. Os discípulos da nova lei devem amar não só o próximo (amigos, familiares, conterrâneos etc.), mas também os inimigos, i.e., aqueles que os odeiam e perseguem (Mt), amaldiçoam e caluniam (Lc). A essa quádrupla manifestação de ódio se deve corresponder com atos proporcionalmente contrários: amai e orai (Mt), de um lado; abençoai e fazei bem (Lc), de outro. Logo, há que responder ao ódio com afeto e benevolência, orações e boas obras, das quais se dão em seguida alguns exemplos: dar em empréstimo o que se pede, sem esperar recompensa (Lc); saudar (Mt) etc.
O amor aos inimigos já de algum modo aparece no AT (e.g., Ex 23,4s; Pr 25,21s, onde se manda ajudar o inimigo em necessidade), Tais passagens, em verdade, se nunca chegaram a melhorar as disposições dos judeus para com os inimigos, tampouco lhes inspiraram qualquer princípio universal e positivo, semelhante ao de Cristo, sobre o amor aos inimigos. No máximo, algumas expressões recomendam aqui e ali não se alegrar com as adversidades dos inimigos, não pagar o mal com o mal e coisas afins. Foi Jesus o primeiro a promulgar a doutrina acima exposta, abraçada por seus discípulos com todo o coração (cf. Rm 12,14-21; 1Pd 3,8s; Inácio de Antioquia, Ad Eph. 10,23s etc.). Eis uma das glórias do Evangelho em matéria moral: “Amar os amigos, todos o fazem; amar os inimigos, somente os cristãos” (Tertuliano, Ad Scap. 1 [ML 1,777]).
V. 45ss. A fim de persuadir os ouvintes deste dever de amor universal, recorre o divino Mestre a três argumentos: devem amar os inimigos (a) para se tornarem filhos do (i.e., semelhantes ao) nosso Pai, que faz nascer o Sol sobre maus e bons etc., ou seja, que dá a todos indiscriminadamente a graça de seus múltiplos benefícios [4]; (b) para terem direito a recompensa, i.e., para que suas ações sejam dignas de prêmio, pois quem ama só os seus, com amor natural e em proveito próprio, não receberá de Deus retribuição alguma; (c) para fazerem mais do que fazem os pagãos e os publicanos (em Lc 6,32: os pecadores), pelos quais tinham os judeus profundo desprezo (cf. Dt 7,2; Mt 18,17; At 10,28 etc.).
O v. 48. contém a regra de perfeição que nesta matéria se há de seguir: Portanto, sede perfeitos (τέλειοι) como o vosso Pai celeste é perfeito. Como se depreende do contexto e, em particular, de Lc 6,36 (Sede pois misericordiosos), é evidente que este inciso não é senão um resumo da exortação à caridade fraterna feita acima, ainda que possa interpretar-se também em sentido amplo, aplicável a qualquer outra virtude.
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DEVEMOS AMAR OS DEMÔNIOS? [5]
Demônios, em sentido próprio, são anjos maus condenados ao inferno, aos quais se podem equiparar, por extensão, as almas dos réprobos, i.e., dos homens condenados em ato.
Conclusão: (I) Aos demônios e aos réprobos, enquanto tais, não devemos amor de caridade, mas ódio; (II) enquanto criaturas de Deus, podemos amá-los por caridade, i.e., com amor não de amizade mas de certa concupiscência, em manifestação da justiça punitiva de Deus.
Prova da I. parte. Há de amar-se por caridade, com amor de amizade, a quem possui ou ao menos pode possuir a bem-aventurança eterna; ora, os demônios e os réprobos não possuem nem podem possuir a bem-aventurança eterna, por eles irremissivelmente perdida; logo, não podemos amá-los por caridade.
Confirmação. Estamos obrigados a amar antes o bem da justiça divina que o das criaturas; ora, o bem da justiça divina demanda que sejam excluídos da bem-aventurança e de qualquer outro bem sobrenatural os demônios e os réprobos; logo, também nós, por caridade para com a justiça divina, os devemos excluir do amor aos bens da caridade.
Prova da II. parte. Enquanto criaturas de Deus, permanentes no ser, podem os demônios e os réprobos manifestar a glória de Deus em sua justiça vindicativa. Logo, por este ângulo, podemos amá-los por caridade como amamos às criaturas irracionais, isto é, com certo amor de concupiscência, não porém de amizade.
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