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Texto do episódio
01

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus
(Mt 1,18-24)

A origem de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua mãe, estava prometida em casamento a José, e, antes de viverem juntos, ela ficou grávida pela ação do Espírito Santo. José, seu marido, era justo e, não querendo denunciá-la, resolveu abandonar Maria, em segredo. Enquanto José pensava nisso, eis que o anjo do Senhor apareceu-lhe, em sonho, e lhe disse: “José, Filho de Davi, não tenhas medo de receber Maria como tua esposa, porque ela concebeu pela ação do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, e tu lhe darás o nome de Jesus, pois ele vai salvar o seu povo dos seus pecados”.

Tudo isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta: “Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho. Ele será chamado pelo nome de Emanuel, que significa: Deus está conosco”. Quando acordou, José fez conforme o anjo do Senhor havia mandado e aceitou sua esposa.

Neste 4º Domingo do Advento, a Igreja propõe à nossa reflexão o Evangelho da anunciação a São José. Ao contrário do anúncio do anjo a Nossa Senhora, cena bem conhecida, o anúncio a José é conturbado. No caso de Maria, o anjo primeiro anunciou, depois veio a gravidez; no caso de José, primeiro veio a gravidez, depois o anúncio do anjo. Nisto esteve o grande drama de José.

Como interpretar esse Evangelho? Queremos interpretá-lo à luz da tradição de fé da Igreja. Sim, há várias opiniões a respeito dele, algumas de raiz protestante; mas o que importa não é o que dizem os críticos ou os hereges, mas a leitura tradicional da Igreja.

Antes de tudo, tenhamos ideias claras. Em primeiro lugar, estamos diante de uma cena providencial. Nossa tendência, compreensível mas humana e carnal, é ler o Evangelho como se fosse uma “novela” cheia de surpresas para os personagens envolvidos.

Temos de ter outro olhar, o olhar da fé, que vê Deus agir prodigiosamente, preparando atrás de cada detalhe um mistério maravilhoso. Afinal, trata-se da história da salvação como tal, cujo centro é a Encarnação do Filho de Deus.

Não à toa a Igreja situa os acontecimentos aqui narrados no ano 1 d.C. Estamos, pois, no marco inicial da história da redenção: a humanidade, perdida, começa a ser salva com a vinda na carne do Verbo divino.

Deus, que sustenta o universo, foi sustentado na barriga de uma mulher; Deus, que sustenta o universo, foi sustentado nos braços de Maria; Deus, criador do céu e da terra, mamou no seio de Maria. Deus veio a este mundo e a primeira coisa que Ele fez, como qualquer criança recém-nascida, foi chorar para liberar os pulmões e conseguir respirar. Deus veio chorar! Eis o escândalo maior, eis o grande mistério. O resto são detalhes.

O problema é abrir sem fé as páginas do Evangelho e tratar Jesus como se Ele fosse um homem qualquer. Não. Jesus é o próprio Deus. Estamos presenciando aqui o nascimento do Filho de Deus, planejado desde toda a eternidade em cada detalhe.

Pois bem, no evangelho de São Lucas, após anunciar a Maria que ela dará à luz um filho, o anjo ouve em resposta algo estranho. Maria diz: “Como isso vai acontecer, se eu não conheço varão?”, o que, em termos equivalentes, significa: “Como isso vai acontecer, se eu não pretendo ter relações sexuais com homem algum”, isto é, “se tenho voto de virgindade perpétua?”

Entendamo-nos. Maria já estava casada com José, e embora não morassem sob o memso teto, podia, se quisessem, ter relações sexuais.

Naquela época, como se sabe, o matrimônio era celebrado em duas etapas. Na primeira, firmava-se o contrato esponsalício, pelo qual já se reconhecia aos nubentes o direito mútuo sobre seus corpos. Na segunda, festejava-se solenemente o contrato por meio de uma procissão em que a esposa era conduzida até a casa do marido.

Em outras palavras, Maria e José, apesar de noivos, já gozavam na prática dos direitos conjugais. Tanto é assim que ninguém, além de José, fica surpreso com a gravidez de Maria.

Não havia por que suspeitar de uma relação pré-matrimonial; pelo contrário, supunha-se que os noivos, uma vez oficializada a promessa de casamento, passavam a relacionar-se sexualmente. Era o costume da época.

No entanto, celebrado o contrato nupcial, Maria deve ter revelado a José seu grande sonho de guardar-se virgem para Deus. E José, segundo a tradição, não só o aceitou como disse ter, desde antes do casamento, o mesmo desejo de manter-se virgem.

Por isso é falsa a imagem de São José como um velhinho viúvo, que não representava perigo algum para a castidade de Maria.

Na verdade, São José tinha de ser jovem, capaz de gerar filhos senão de onde viria Jesus? Se José fosse um velho sexualmente incapaz, de quem — pensaria o povo — teria nascido Jesus? Para o público em geral, que não conhecia o mistério de Deus, Jesus era filho natural de José.

Os evangelistas mesmo o atestam claramente. Eis o que diz São Lucas, depois de narrar o batismo no Jordão: “Ao iniciar seu ministério, Jesus tinha cerca de trinta anos e era, segundo se pensava, filho de José”.

É, pois, evidente que José e Maria fizeram voto de virgindade. Não há outra interpretação possível para a resposta de Nossa Senhora. Se Gabriel lhe dissesse: “Tu vais conceber e dar à luz um filho”, e ela, estando casada, respondesse apenas: “Como isso vai acontecer?”, só poderíamos concluir que a Virgem santíssima não sabia de onde vêm os bebês.

Ora, qualquer um sabe disso… Quando um homem e uma mulher se casam, nascem bebês. Maria sabia disso. Estava casada com José, com quem poderia ter relações sexuais, e no entanto levanta uma objeção à palavra do anjo: “Como isto se dará, se não conheço homem algum?” O sentido da frase é: “Como isso vai acontecer, se tenho voto de castidade com José?”

O anjo explica-lhe o milagre e a Virgem Maria diz: “Eis aqui a serva do Senhor”. Acontece o grande milagre da Encarnação, Verbum caro factum est, no ventre de Maria. Cristo, enquanto homem, começa a existir na carne. 

Maria, porém, não recebeu permissão para contar a São José esse segredo de Deus. Naturalmente, José se dá conta da gravidez e, observa a Escritura, por ser justo, pensa em abandonar sua esposa em segredo.

Mas como? José, sendo justo, decide abandoná-la em segredo? Sim. É que nós não acreditamos na santidade de José, assim como não acreditamos em muitas outras coisas afirmadas na Escritura. 

Os Evangelhos nos dizem que Judas era o filho da perdição, um maldito, mas que católico acredita hoje que ele tenha sido condenado ao inferno? Ora, por que não acreditamos que uma pessoa possa ser má a esse ponto? Porque medimos tudo pela mediocridade da nossa malícia.

A Escritura nos diz que São José era justo, e nós preferimos achá-lo um “cara legal”. Não acreditamos na heróica santidade de José, porque medimos tudo conforme a régua da nossa mediocridade.

Nós, modernos que somos, não acreditamos nos demônios por quê? Não acreditamos que possa haver pessoas tão más e depravadas como eles, porque medimos tudo pela régua da nossa mediocridade! Tampouco acreditamos em anjos, porque nos parece impossível haver pessoas tão santas como eles. Medimos tudo pela nossa mediocridade.

Muitos não sabem interpretar este Evangelho porque tampouco sabem crer. Não medem as coisas pela medida da graça e da generosidade divinas, mas pela medida da própria mediocridade. Assim, quando a Sagrada Escritura diz: “José, seu marido, era justo”, entendem que José fosse, se tanto, um homem bonzinho…

Ora, δίκαιος é justo no sentido de santo. São José era santíssimo, e um santo não desconfia de outros santos. Se São José era justo, isto é, santo, reconhecia a santidade de Maria — os santos se conhecem —, e Maria era não só santa como santíssima, um prodígio de santidade, a criatura mais santa de quanta jamais houve.

Ora, como seria possível que um homem santo como São José não visse a santidade, clamorosa e patente, da Virgem Maria, por discreta que ela fosse? Um santo pode até esconder sua santidade dos pecadores, mas não de outro santo.

José sabia da santidade de Maria, por isso não duvidou nem da honestidade nem da virgindade da Mãe santíssima. Sim, José era justo, e os justos não se precipitam em julgamentos. Não nos atrevamos a julgar São José com base em nossa mediocridade, a partir de um coração mau, desconfiado e desacostumado com as coisas de Deus.

O santo Patriarca, como Moisés, que receou aproximar-se da sarça ardente, pensa então em abandonar Maria em segredo.

Demos uma olhada no texto grego deste verísculo: Ἰωσὴφ δὲ, então José, ὁ ἀνὴρ αὐτῆς, seu marido, δίκαιος ὢν, sendo justo... Nossa tradução litúrgica diz aqui que José não queria denunciá-la, porém o verbo δειγματίσαι, que está no original, quer dizer “expor publicamente”.

O mesmo verbo (δειγματίζω) aparece na Carta aos Colossenses (cf. 2,15), onde São Paulo compara Jesus a um general que venceu a batalha.

Ora, os generais vencedores voltavam triunfantes ao país de origem e traziam consigo vários inimigos, presos para serem expostos como paradigma, isto é, como exemplos ou sinais negativos da vitória alcançada: “Despojou os principados e potestades (infernais), e fez deles um objecto de escárnio [ἐδειγμάτισεν] público, triunfando deles pela cruz”.

São José não queria expô-la publicamente a  um embaraço. Sabia que a Criança era santíssima e que Maria concebera de forma misteriosa. “Não posso assumir uma criança”, há de ter pensado ele, “que é filha de Deus. Isso seria injusto”. São José era justo. “Como poderia arrogar-me o mérito de ser pai de um fruto tão precioso? Não seria uma farsa?”

São José era justo, por isso pensa em abandonar Maria em segredo. Humilde, sabia muito bem que o Menino, Filho do Altíssimo, não era fruto seu; mas, não querendo expor Maria publicamente, José prefere ir embora, deixando que o povo, antes, pense mal dele que de Maria.

Eis a santidade de José! Sendo justo, sabia da pureza de Maria, por isso nunca pôs em dúvida sua inocência; mas a criança nela gerada, decerto fruto de um milagre, não era sua. Ora, se a Lei o proibia de assumir publicamente aquela paternidade, não lhe restava alternativa senão ir embora.

Esse é o verdadeiro sentido do Evangelho de hoje, uma escola de humildade e prova da santidade de José. O anjo, em sonho, diz a José: “José, filho de Davi, não tenhas medo de receber Maria como tua esposa, porque ela concebeu pela ação do Espírito Santo”, isto é, não temas receber em tua casa nem a Mãe como tua esposa, nem o Filho como fruto teu.

José recebeu a graça do Natal. A exemplo dele, tenhamos a humildade de nos aproximar do presépio, do pequeno bercinho, da criança deitada em palhas. Como ter medo de um Deus feito criança, que chora na noite de Natal, mas para enxugar as nossas lágrimas? Que sofre o nosso sofrimento, mas para nos poupar da nossa miséria? Que vem viver nossas infelicidades, mas para nos dar a sua felicidade eterna?

Que este Natal seja feliz e abençoado!

* * *

COMENTÁRIO EXEGÉTICO

Angústia de José (v. 18s). — V. 18. Ora, a origem (gr. ἡ γένεσις) de Jesus Cristo, com respeito tanto à concepção quanto à natividade, foi assim: Maria, sua mãe, estava prometida em casamento [1] a José e, antes de passarem a conviver, i.e., antes de José conduzir Maria à casa, um ano após a celebração dos esponsais. Alguns interpretam o verbo conviver (ou coabitar, em outras traduções; lt. convenire, gr. συνελϑεῖν) no sentido de “fazer uso do matrimônio” (e.g., Crisóstomo, Ambrósio, Jerônimo, Maldonado etc.).

A primeira interpretação, mais comum e tradicional, é também a mais provável: (a) porque a este verbo se contrapõe, nos vv. 20.24, o verbo receber (gr. παραλαβεῖν, lt. accipere), que se diz propriamente do homem ao conduzir a esposa à casa para viver com ela; (b) porque pouco depois, no v. 25, exprime-se o uso do matrimônio pelo eufemismo conhecer, típico da linguagem bíblica. Tenha-se presente, no entanto, que, mesmo admitida a segunda interpretação, daí não se segue dificuldade alguma para a virgindade perpétua de Maria: “Do fato de ser dito ‘antes de passarem a conviver’ [com união carnal] não se segue que depois tenham convivido [sexualmente], senão que a Escritura diz apenas o que não foi feito” (São Jerônimo: ML 26,24), sem insinuar que tenha ocorrido mais tarde.

Ela encontrou-se grávida, i.e., depois de certo tempo, talvez após três meses de permanência em casa de Isabel, ela apareceu (visivelmente) grávida, mas pela ação do Espírito Santo (gr. ἐϰ πνεύματος ἁγίου), i.e., porque concebera pela ação e virtude divina. (Com efeito, a ausência de art. definido no texto gr., aqui e no v. 20, indica que a concepção virginal não é obra só da terceira Pessoa, mas de toda a Santíssima Trindade, cujas operações ad extra são sempre comuns às três.) [2]

O evangelista acrescenta na mesma cláusula: pela ação do Espírito Santo, para que o leitor nem por um momento suspeite qualquer coisa contra a virgindade de Maria. Alguns intérpretes opinam que este v. deve ler-se conjuntamente com o seguinte a modo de explicação, de forma que o sentido do texto seria: “José conheceu que Maria concebera pela virtude do Espírito Santo e, por humildade, a quis despedir”. Essa explicação, contudo, vai de encontro ao dito em seguida: Não tenhas receio de receber Maria, tua esposa; o que nela foi gerado vem do Espírito Santo (v. 20). Segundo tais autores, o que o anjo teria dito, na verdade, foi: “Embora tenha ela concebido do Espírito Santo, não tenhas receio de a receber”.

Note-se a propriedade do verbo encontrou-se (lt. inventa est, gr. εὑρέϑη), que ressalta, do ângulo de Maria, o caráter miraculoso de sua concepção e evidencia, ao mesmo tempo, a surpresa de José, que não podia encontrar explicação razoável, afastada toda suspeita de adultério, para aquela gravidez.

V. 19. José, seu esposo (gr. ἀνήρ = varão, porque entre os hebreus o esposo já era considerado marido), sendo justo, i.e., íntegro, fiel observador da lei, não queria habitar com uma esposa grávida de outro ou por outro meio, por ser prática contrária aos preceitos da lei (cf. Dt 22,23s); mas, por outra parte, não queria denunciá-la (lt. traducere, gr. δειγματίσαι = difamar, tornar infame), i.e., abandoná-la publicamente, seja por delação aos juízes, seja por libelo de repúdio entregue perante eles, pois não podia duvidar de sua inocência: é próprio do justo, com efeito, não fazer juízo temerário de uma situação que não chega a compreender de todo. Então pensou (lt. voluit, gr. ἐβουλήϑη = deliberou consigo mesmo, considerou) em despedi-la secretamente, pensando talvez em partir para outra região ou em rescindir, na presença de duas testemunhas, por libelo de repúdio, o contrato esponsalício (cf. Dt 24,1, que a antiga tradição rabínica interpretava não só em referência à mulher, mas também à esposa) [3]

Dubium: Teria o bem-aventurado José suspeitado de adultério por parte da Virgem Santíssima?—1) Afirmam-no muitos escritores (e.g., Ambrósio, Agostinho, Crisóstomo etc.). Mas tal suspeita parece inadmissível, além de ser indigna tanto de José quanto de Maria e de Cristo, por implicar certa injúria à pureza intemerata da Mãe, macular de certo modo a prudência do pai e, com isto, acarretar certa ignomínia para o divino Salvador. Menocchio tentou amenizar, sem sucesso, o rigor dessa opinião, dizendo: “Talvez [José] tenha pensado que Maria fora violentada, por isso não tinha culpa daquela gravidez”.

2) Muitíssimos autores preferem outra via, que já a São Jerônimo parecera mais razoável e adequada: “José, sabendo da castidade dela e atônito ante o que sucedera, cobre com silêncio aquilo cujo mistério desconhecia”. Santo Tomás o expõe nos seguintes termos (Super Matth. I l. 4): “Segundo Jerônimo… [José] não suspeitou de adultério. Sabia, com efeito, da pureza de Maria; lera na Escritura que uma virgem havia de conceber: ‘Um renovo sairá do tronco de Jessé, e um rebento brotará de suas raízes’ (Is 11,1; cf. 7,14); sabia também que Maria era descendente de Davi. Logo, era-lhe mais fácil crer que isto se cumprira nela que pensar que ela houvesse fornicado. Julgando-se pois indigno de coabitar com tão grande santidade, quis despedi-la em segredo, como São Pedro disse: ‘Retira-te de mim, Senhor, porque sou um homem pecador’ (Lc 5,8; cf. Mt 8,8)”. — Objeção: Se fosse assim, seria infundado o receio de a denunciar (saberia não haver culpa) e supérflua a revelação do anjo (já teria notícia do mistério).

3) Outra explicação possível para a perplexidade de José funda-se na opinião, bastante comum entre os medievais, segundo a qual Maria e José, embora unidos por verdadeiro matrimônio, fizeram voto de castidade perpétua antes do casamento. É o que parece depreender-se das palavras da Virgem, que, já casada e sob o poder marital de José, pergunta ao anjo: “Como se fará isso, pois não conheço homem?” (Lc 1,34), como se dissesse: “Como hei de conceber se, estando casada, me obriguei diante de Deus a não conhecer varão?” Ora, como José conhecesse a pureza e a integridade de Maria, além de seu propósito de manter-se virgem ao seu lado, vendo aquela gravidez, não pôde senão guardar silêncio, como se estivesse na presença de um mistério para o qual não havia explicação [4].

Revelação do anjo (vv. 20-25). — V. 20. Mas, no que lhe veio esse pensamento (gr. ἐνϑυμηϑέντος, ao considerar de si para si essas coisas), apareceu-lhe em sonho (ϰατ’ ὄναρ, por sonho, i.e., durante o sono) um anjo do Senhor, que lhe disse: José, Filho de Davi, não tenhas receio de receber, i.e., de trazer para tua casa Maria (como) tua esposa; o que nela foi gerado (gr. γεννηϑέν = concebido) vem do Espírito Santo, e não de homem.

V. 21. Em seguida, ouve do anjo (que, não sem probabilidade, deve ser o mesmo Gabriel) o que já fora revelado a Maria (cf. Lc 1,31ss): Ela dará à luz um filho, e tu lhe porás o nome de Jesus, alusão evidente a Is 7,14: Uma virgem conceberá e dará à luz um filho. — Jesus (Jeshua‘, antes Jehoshua‘, composto de duas palavras: יהוה, da forma apocopada יה = Jahweh, e שוע = salvar, i.e., Jahweh salva), é o mesmo que salvador; por isso as palavras que vêm em seguida, ele vai salvar o seu povo dos seus pecados, não são mais do que uma explicação do nome.

A José são atribuídos verdadeiros direitos paternos sobre o Filho que nascerá de Maria, pois dar nome é prerrogativa tanto da mãe quanto do pai, como mostram inúmeros exemplos (cf. Gn 41,1; 5,29; 21,3 etc.). — O vocábulo povo significa, de modo imediato, Israel, a quem Cristo foi enviado primeiro e ao qual, enquanto homem, pertencia; mas, em sentido lato, abarca todo o gênero humano, visto que, pela redenção, todos os homens se tornaram povo de Cristo, que tem direito de conquista sobre todas coisas [5]. Ao mesmo tempo, declara-se a índole espiritual desta libertação, contrária à expectativa comum dos judeus: dos pecados deles (i.e., do povo, por enálage de número), e não tanto da opressão política de nações estrangeiras.

V. 22. Tudo isto que se disse sobre a concepção, a natividade e a imposição do nome de Cristo, aconteceu para que se cumprisse (gr. ἵνα πληρωϑῇ, fosse levado a cabo) o que foi dito pelo Senhor por meio do profeta, que diz: Eis que a virgem etc. — Como (ca. 735-734 a.C.) os reis da Síria e de Israel se tivessem coligado contra Acaz, rei de Judá, a este, por boca de Isaías, prometeu o Senhor a vitória; não só isso: para confirmar o vaticínio, daria qualquer sinal que lhe pedisse o rei. Mas como Acaz, por incredulidade e falsa modéstia, recusasse a oferta, o profeta, por ordem divina, vaticinou o nascimento futuro do Messias de uma virgem, como o maior e mais eficaz milagre de todos (cf. Is 7,1-14).

O evangelista cita as palavras do profeta (segundo a LXX): Eis que a virgem (gr. ἡ παρϑένος, com art. definido; hebr. hā-‘almā [הָעַלְמָ֗ה], i.e., aquela virgem determinada, dentre todas eminente) ficará grávida e dará à luz um filho. Em hebr. há dois particípios: concebendo (הָרָה) e parindo (יֹלֶדֶת), que, por se referirem ao sujeito virgem, indicam a permanência da virgindade em ambos os estados, ante partum e in partu. — E lhe porão o nome de Emanuel (hebr. עִמָּ֥נוּ אֵֽל = Deus conosco).

Com esta profecia, de acordo com os católicos e muitos protestantes, são explicitamente anunciados a concepção e o nascimento do Messias de uma virgem; ao mesmo tempo, demonstra-se, como dito, a virgindade de sua Mãe antes do parto e durante o parto: de fato, ela conceberá virgem e ainda virgem dará à luz. Por isso é menos provável a opinião dos que vêem nas palavras do profeta uma referência imediata a alguma moça, à mulher de Isaías ou do próprio Acaz, e apenas mediata e tipológica à Mãe do Messias [6]. — Não há dúvida de que Mt vê na concepção e no nascimento de Jesus o cumprimento da profecia. Ele é verdadeiramente Emanuel porque, “ainda que Deus sempre tenha estado com os homens, nunca antes esteve de modo tão manifesto” (Crisóstomo, Hom. 5 in Matth = Montfaucon, 87), i.e., em carne visível. — As palavras finais, que significa etc., parecem uma inserção do intérprete grego de Mt.

V. 24s. Quando acordou, José fez conforme o anjo do Senhor tinha mandado e publicamente acolheu Maria como sua esposa; e não teve relações com ela até o dia em que deu à luz

Dessas palavras, maldosamente entendidas, se serviram Joviniano, Helvídio [7] e outros hereges para negar impudentemente a virgindade de Maria depois do parto. Ora, em Gn 8,7 se diz que o corvo não voltou até que aparecesse a terra seca; em 2Sm 6,23, afirma-se que Micol não teve mais filhos até o dia de sua morte. Acaso teriam os hagiógrafos querido dizer que o corvo, depois que se secaram as águas, voltou à arca, ou que Micol, depois de morto, teve mais filhos?… É evidente, pois, que a cláusula até o dia em que deu à luz não implica que, daquele dia em diante, tiveram relações, mas que Maria engravidou e deu à luz sem ter tido relação carnal.

O seu filho primogênito (cf. infra 2,6s). A palavra πρωτότοϰον, aqui, provavelmente, não é autêntica, já que é omitida em diversos códices e versões. Entretanto, em Lc 2,7 de fato se lê: E deu à luz seu filho primogênito, o que não foi escrito pelo evangelista sem razão, por ser Cristo o primogênito de Deus em sentido particularíssimo (i.e., unigênito por natureza), além de possuir sobre seus irmãos certos direitos e incumbências enquanto Cabeça a que pertencem os membros do Corpo místico, i.e., da Igreja. 

Nota sobre a virgindade de Maria. — É de fé divina e católica definida que a bem-aventurada Mãe de Deus Maria santíssima foi e permaneceu sempre e perfeitamente virgem, antes, durante e depois do parto, com virgindade de corpo (integridade física inviolada) e de mente (disposição perpétua de abster-se de toda e qualquer prática venérea, inclusive por simples desejo). Veja-se, e.g., a definição solene do Concílio de Latrão (649 d.C.) cân. 3 (DH 503): “Se alguém não professa… que depois do parto permaneceu inviolada a sua [de Maria] virgindade, seja condenado”, e a declaração de Paulo IV, ao condenar na bula Cum quorumdam hominum (DH 1880), de 1555, a seita dos unitários, que afirmavam que “a beatíssima Virgem Maria não… permaneceu sempre na integridade virginal, i.e., antes do parto, no parto e perpetuamente depois do parto” (ante partum scilicet, in partu et perpetuo post partum). — Uma explicação ao mesmo tempo sucinta e detalhada dessa doutrina encontra-se disponível no programa Resposta Católica, episódio 266 (23 jul. 2019).

Notas

  1. Esposa ou prometida (gr.ἐμνηστευμένη, lt. desponsata), neste contexto, significa o mesmo que unida em matrimônio, uma vez que os esponsais dos hebreus supunham não só a promessa de casamento, como é o caso do noivado moderno, mas constituíam já um verdadeiro matrimônio, com todos os direitos e deveres que competem aos cônjuges. Eis por que a infidelidade da esposa era punida pela lei com a mesma pena do adultério (cf. Dt 22,23ss). Um ano após os esponsais, a esposa era finalmente conduzida à casa do esposo, e então se celebravam solenemente as núpcias.
  2. Cf. Diekamp, Manuale, 346s.387. Em razão da simplicidade divina, torna-se de todo impossível estabelecer qualquer distinção real entre a natureza de Deus e suas operações. Ora, o operar de Deus nada mais é do que a própria natureza divina, enquanto concebida como entender e querer infinitos em relação a um termo extradivino. Assim pois como a própria natureza divina é una, é necessário que também o seja a operação (cf. STh I 45, 6). Nada impede, contudo, apropriar a uma das três Pessoas uma dada operação ad extra, não porque esta não seja obra das outras duas, mas porque se atribui àquela para manifestar mais claramente quoad nos a distinção e as propriedades delas. Afinal, a Trindade, embora seja inseparável e indivisível, nunca seria entendida por nós como Trindade, se a ela só nos referíssemos inseparável e indivisamente (cf. Leão I, Serm. [LXXVI] de Pent. II 3: ML 54,402). Embora seja uso já consagrado atribuir a obra da encarnação ao Espírito Santo, não se pode perder de vista que a terceira Pessoa não é, em sentido algum, “pai” de Jesus Cristo. Com efeito, a paternidade implica gerar, da própria substância, a outro semelhante a si segundo a espécie, coisa que não fez o Espírito Santo, a quem se atribui, não a geração do Filho, mas a produção milagrosa da natureza humana por ele assunta no seio de Maria Virgem.
  3. Cf. Fílon de Alexandria, De spec. III 12 (= Cohn, 170 l. 5ss): Os esponsais têm o mesmo valor que o matrimônio”.
  4. Como o voto ou mesmo o propósito de manter-se virgem é compatível com I. os costumes daquele tempo e II. com o fato dos esponsais contraídos por Maria e José? — Ad I.: Há que reconhecer que os judeus nunca deram grande valor à virgindade; de fato, enalteciam tanto o matrimônio e a geração de filhos, que se abster do primeiro ou ser privado dos segundos era motivo de vergonha. Mas há que recordar ainda que a castidade, inclusive a conjugal, era muito elogiada pelos rabinos, e não faltavam exemplos de pureza; além disso, já antes do NT, os essênios viviam em castidade perpétua, como meio de dedicar-se mais livremente à ascese e de não ser impedidos (por ocupações domésticas) da vida religiosa em comunidade. Ora, nada impede que, fora desses círculos, houvesse homens e mulheres comuns interessados em seguir o mesmo caminho de pureza e ascese. Tampouco há dúvida de que Maria, iluminado pelo Espírito Santo, compreendeu melhor que seus contemporâneos a excelência da virgindade e da pureza. Das virgens cristãs, foi ela a primeira não só por precedência cronológica, mas pela pureza de intenção e pela perpetuidade do efeito. — Ad II.: Entre os judeus, a moça que quisesse manter-se virgem e consagrar-se a Deus não tinha outro caminho viável senão o de um casamento com um homem que desejasse o mesmo; logo, não era em si mesmo impossível contrair matrimônio sem que ambas as partes tivessem a intenção de consumá-lo. Além disso, se Maria era filha herdeira, deveria casar-se em obediência à lei (cf. Nm 36,6ss).
  5. Cf. Pio XI, Encíclica Quas Primas, 11 dez. 1925, n. 10 (AAS 17 [1925] 598s): “Ora, em que fundamento se apoie esta dignidade e potestade de Nosso Senhor, explica-o adequadamente Cirilo de Alexandria: ‘Ele, para o dizer numa palavra, tem o domínio de todas as criaturas, não arrebatado à força nem imposto desde fora, mas por sua essência e natureza’…, i.e., o seu principado baseia-se naquela admirável união a que chamamos hipostática. Donde se segue que Cristo há de ser adorado como Deus pelos anjos e pelos homens, mas também que ao seu império enquanto Homem os anjos e os homens devem obedecer e estar sujeitos, na medida em que pelo só título de união hipostática Cristo já tem poder sobre todas as criaturas. Mas haverá algo mais doce e suave do que pensar que Cristo tem império sobre nós não apenas por direito nativo, mas também adquirido, i.e., de redenção? Oxalá os homens esquecidos recordem o quanto custamos ao nosso Salvador: ‘Não a preço de coisas corruptíveis, de prata ou de ouro, mas pelo precioso sangue de Cristo, o cordeiro sem defeito e sem mancha’ (1Pd 1,18s). Já não nos pertencemos, pois Cristo nos comprou ‘por um grande preço’ (1Cor 6,20); até nossos próprios corpos ‘são membros de Cristo’ (1Cor 6,15)”.
  6. Para esses autores, a expressão hebr. significaria moça, jovem, donzela etc. Argumentam que a jovem em questão seria mulher de Acaz, a qual, como antes fosse estéril, daria à luz por milagre um filho, fosse ele Ezequias ou algum outro. Ora, (a) é evidente que não pode tratar-se de Ezequias, pois este já era nascido: de fato, Acaz reinou apenas 16 anos, ao passo que Ezequias, quando assumiu o trono, tinha já 25 anos de idade; logo, nasceu antes de o pai tornar-se rei. Além disso, (b) nem Ezequias nem nenhum outro filho de Acaz, pelo que consta, foi chamado Emanuel. Por último, (c) se o profeta estivesse referindo-se a uma simples jovem, suas palavras não conteriam nenhum sinal: que há de novo e maravilhoso em uma jovem dar à luz? E, se se tratava da mulher de Acaz, como poderia ser estéril, se já dera à luz Ezequias? A interpretação literal e ortodoxa, fundada na LXX, que verte o hebr. por “a virgem”, vê nas palavras do profeta uma alusão direta à Virgem deípara, que concebeu e deu Cristo à luz sem perder a integridade física. — Cf. a Lapide, Commentarii…, 56a; Patrizi, De inter SS. I 14 nn. 370-376) dá várias razões para pensar que a esta, como tampouco a outras várias profecias, não subjaz nenhum outro sentido (místico ou anagógico) além do literal, e recorda: “Foram sobretudo os judeus afeitos à cabala que mais suaram em busca do sentido místico das palavras, prática que *Glassius chama jocosamente espúria, impura, senil e febriculosa”.
  7. A quem Jerônimo respondeu com seu habitual e cáustico bom humor (cf. De virg. perp. 4: ML 23, 195): “Helvídio, antes de fazer penitência, morreu. Quer dizer então que se arrependeu depois de morto, embora diga a Escritura que ‘na morte não há quem se lembre de ti’ (Sl 6,6)?” Veja-se Corluy, Commentarius, 168.
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