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Dies Iræ: uma meditação sobre o fim dos tempos

Ao fim de todo Ano Litúrgico, a Igreja nos convida a uma meditação sobre o Fim dos Tempos. A partir do antigo hino medieval "Dies Iræ" e da composição de Mozart, Padre Paulo Ricardo nos conduz, nesta aula, a uma reflexão espiritual sobre a nossa vida e sobre a história da humanidade.

Texto do episódio
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A partir da reforma ocorrida após o Concílio Vaticano II, a última semana do ano litúrgico tem como hino facultativo do Ofício das Leituras, das Laudes e das Vésperas um antigo hino medieval, de autoria atribuída a Tomás de Celano. Trata-se do famoso Dies Irae. Antes da reforma litúrgica, o hino fazia parte da Missa de Requiem: era a sequência que se meditava antes do Evangelho. Embora tenha sido retirada do Ofício dos Fiéis Defuntos pelo conselho de reforma litúrgica de Annibale Bugnini, o hino expressa com validade e profundidade riquíssima aquilo que as Sagradas Escrituras falam sobre o Juízo Final e as últimas realidades escatológicas.

Este belo hino ganhou uma composição musical fantástica de Wolfgang Amadeus Mozart, que pautou boa parte de sua obra pela teologia católica. No decorrer desta aula ao vivo, é apresentada a execução do Dies Irae pelo maestro britânico John Eliot Gardiner [1].

A expressão Dies irae ("dia da ira") é extraída da Bíblia: "Esse dia será um dia da ira, dia de angústia e de aflição, dia de ruína e de devastação; dia de trevas e escuridão, dia de nuvens e de névoas espessas, dia de trombeta e de alarme, contra as cidades fortes e as torres elevadas" [2].

A "ira" de Deus consiste em uma expressão do seu amor, em uma forma de recordar aos homens que suas ações têm consequências. Faz parte da pedagogia de Deus corrigir o homem, enquanto se encontra neste mundo, a fim de que se salve. Infelizmente, tem quem teime em encaixar a ira divina apenas no Antigo Testamento, acabando por cair no erro do heresiarca Marcião, cuja doutrina gnóstica distinguia o "deus" da lei judaica do "deus" do Novo Testamento. Ora, é evidente que, para os cristãos, que "veneram o Antigo Testamento como verdadeira Palavra de Deus" [3], não há diferença alguma entre o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó e o Deus que se revelou em Jesus Cristo. "Por isso a sã doutrina cristã sempre recusou qualquer forma emergente de marcionismo, que tende de diversos modos a contrapor entre si o Antigo e o Novo Testamento" [4].

Canta o hino: "Dies irae, dies illa / solvet saeclum in favílla, / teste David cum Sibýlla – Dia da ira, dia aquele / O mundo se dissolve em cinza, / Como foi atestado por Davi e pela Sibila". "Como foi atestado por Davi", quer dizer, como foi confirmado pelo próprio Velho Testamento; "e pela Sibila", isto é, até mesmo as religiões pagãs reconheceram a existência deste "dia final". Ninguém ignora a existência do fim dos tempos.

"Quantus tremor est futúrus, / quando iudex est ventúrus / cuncta stricte discussúrus! – Quanto tremor acontecerá, / Quando o juiz vier / Para tudo julgar estritamente!". Narra o Evangelho que "os homens desmaiarão de medo e ansiedade, pelo que vai acontecer no universo" [5]. Nestes primeiros versos, o Dies Irae canta justamente este aspecto terrível do Juízo: o tremor das criaturas diante d'Aquele que é o Rei de todo o universo.

Na peça de Mozart, neste momento, o barítono (aquele com a voz mais grave) imita o som da trombeta, da qual fala São Paulo a Tessalônica: "Quando for dado o sinal, à voz do arcanjo e ao som da trombeta de Deus, o mesmo Senhor descerá do céu..." [6]: "Tuba mirum spargens sonum / per sepúlcra regiónum, / coget omnes ante thronum – A trombeta espalhando o som admirável / Pela região dos sepulcros, / Leva todos diante do trono".

Segue-se, então, a ressurreição dos mortos [7]: "Mors stupébit et natúra, / cum resúrget creatúra / iudicánti responsúra – A morte e a natureza se espantarão, / Quando a criatura ressurgir / Respondendo ao que irá julgar". Aqui, Tomás de Celano utiliza-se de uma prosopopeia: ele dá características humanas à morte e à natureza, que "se espantarão" diante da ressurreição dos mortos, diante da glorificação daquela matéria sobre a qual dominava a concupiscência. Iudicánti responsúra: os mortos levantar-se-ão à simples voz do Juiz, para respondê-Lo prontamente.

"Liber scriptus proferétur, / in quo totum continétur / unde mundus iudicétur – Será trazido um livro escrito, / No qual tudo está contido / A partir do qual o mundo será julgado". Trata-se, por assim dizer, da memória de Deus, o "livro da vida" do qual fala o livro do Apocalipse: "os mortos foram julgados conforme o que estava escrito nesse livro, segundo as suas obras" [8]. Este é o acusador diante do tribunal de Deus: os nossos atos e omissões.

"Iudex ergo cum sedébit, / quicquid latet apparébit; / nil inúltum remanébit – Quando o juiz então se sentar, / Tudo o que está escondido aparecerá; / Nada permanecerá sem vingança". Quando Deus se sentar em Seu trono, tudo aquilo que permanecia oculto será revelado. Tudo aquilo que de bom e ruim os homens realizaram será colocado às claras. Para os eleitos, isto será motivo de grande júbilo; para os condenados, porém, de grande vergonha.

Deus fará justiça: a maldade e o pecado serão, enfim, derrotados. Isto deve ser motivo de grande consolação. O importante é que, na hora de condenação, quando a morte e o mal forem precipitados no inferno, nós não estejamos apegados a eles e venhamos também a ser lançados no fogo. Deus ama o homem, e é precisamente por amá-lo que virá com uma espada para separá-lo pecado, a fim de que ele possa entrar no Céu.

"Quid sum miser tunc dictúrus, / quem patrónum rogatúrus, / cum vix iustus sit secúrus? – O que então eu miserável direi, / A quem clamarei como advogado, / Quando nem mesmo o justo estiver seguro?". Naquele dia, "nem mesmo o justo" estará seguro. Isto não significa que quem já foi salvo, após o juízo particular, corre o risco de condenar-se. Este verso quer mostrar, antes, a condição miserável de todas as criaturas diante da majestade divina, a pequenez de todos os homens – até os mais santos – na presença de Deus.

Surge, então, o advogado da humanidade, o "mediador entre Deus e os homens: Jesus Cristo" [9]: "Rex treméndae maiestátis, / qui salvándos salvas gratis, / salva me, fons pietátis – Rei de tremenda majestade, / Que salvar de graça os que devem ser salvos / Salva-me, ó fonte de piedade". Mozart coloca, aqui, toda a potência do coro, para cantar a majestade de Deus. É uma entrada triunfal e majestosa para um "Rei de tremenda majestade". Contrastando com esta ostentação surge o último verso: "Salve-me, ó fonte de piedade". A voz humilde e contrita deste verso expõe a confiança que perpassa toda a letra e composição deste hino. O mesmo que virá julgar todos os povos é o advogado, aquele que os defenderá. Brota, então, do coração humano, uma profunda esperança: "Recordáre, Iesu pie, / quod sum causa tuae viae, / ne me perdas illa die – Recorda-te, ó Jesus piedoso / Que sou a causa de teu peregrinar, / Não me percais naquele dia".

"Quaerens me sedísti lassus, / redemísti crucem passus; / tantus labor non sit cassus – Ao me buscar sentaste cansado, / Redimiste sofrendo a cruz; / Tanto sofrimento não seja em vão". Para implorar a misericórdia de Jesus, o réu recorre não aos méritos que ele porventura possua, mas aos méritos de Cristo Crucificado; ele pede que todo o Seu suplício neste mundo não seja desperdiçado.

"Iuste iudex ultiónis, / donum fac remissiónis / ante diem ratiónis – Justo juiz de vingança, / Concede o dom da remissão / Antes do dia da prestação de contas". Agora, a invocação tem como finalidade pedir a remissão dos pecados antes do dia do Juízo e, em última instância, antes da própria morte, já que, como ensina o Catecismo, "a morte é o fim (...) do tempo de graça e de misericórdia que Deus lhe oferece (...) para decidir seu destino último" [10]. O pedido é feito com confiança na misericórdia de Deus, à qual o homem entrega toda a sua miséria e indignidade: "Ingemísco tamquam reus, / culpa rubet vultus meus; / supplicánti parce, Deus – Eu gemo como um réu, / A culpa torna meu rosto vermelho; / Ó Deus, tem piedade do que suplica".

"Qui Mariam absolvisti / et latrónem exaudísti, / mihi quoque spem dedísti – Tu que absolveste Maria, / E ouviste o ladrão, / Também a mim deste esperança". A reforma litúrgica trocou o verso Qui Mariam absolvisti por Peccatrícem qui solvísti ("Tu que absolveste a pecadora") por uma questão simplesmente exegética, já que os estudiosos contemporâneos tendem a não identificar Maria Madalena como a mulher adúltera do Evangelho [11]. O pecador lembra ao Senhor a sua piedade para com esta mulher e para com o bom ladrão, tendo esperança que também ele seja absolvido, ainda que sua prece seja indigna: "Preces meae non sunt dignae, / sed tu, bonus, fac benígne / ne perénni cremer igne. / Inter oves locum praesta / et ab haedis me sequéstra, / státuens in parte dextra – Minhas preces não são dignas, / Mas tu, ó bondoso, age benignamente / Que eu não queime no fogo eterno. / Concede um lugar entre as ovelhas / Rapta-me do inferno, / Colocando-me do lado direito".

Os versos finais do hino Dies Irae retratam, por fim, a sentença do Juízo Final: "Confutátis maledíctis, / flammis ácribus addíctis, / voca me cum benedíctis – Refutados os malditos, / Entregues às chamas ardentes, / Chama-me com os benditos". As palavras duras da letra só não são mais severas que as indicações do próprio Jesus: "Ele se voltará (...) para os da sua esquerda e lhes dirá: 'Retirai-vos de mim, malditos, ide para o fogo eterno destinado ao demônio e aos seus anjos'" [12]. Quem acoima este belo hino medieval de "quadrado" ou supersticioso, na verdade, perdeu de vista o próprio fio pelo qual Cristo conduz toda a pregação da boa nova: a salvação daqueles que fazem a Sua vontade e o eterno castigo daqueles que a rejeitam obstinadamente.

"Oro supplex et acclínis, / cor contrítum quasi cinis, / gere curam mei finis – Suplicando e inclinado eu peço, / Com o coração contrito como cinza, / Cuida de meu fim". O réu pede a Jesus que cuide do seu destino e fá-lo "com o coração contrito como cinza", isto é, com o coração macerado, à semelhança de um vaso quebrado e pisoteado a ponto de tornar-se pó. Eis a bela figura que expressa a condição com a qual o homem deve apresentar-se diante de Deus.

Enfim, chega-se à conclusão do canto, que finda com um lamento, com um luto: "Lacrimósa dies illa, / qua resúrget ex favílla / iudicándus homo reus. / Huic ergo parce, Deus. / Pie Iesu Domine, / dona eis requiem. Amen – Lacrimoso aquele dia, / No qual ressurgirá das cinzas / O homem réu a ser julgado. / Tem dele piedade, ó Deus, / Piedoso Senhor Jesus, / Dá-lhes o repouso. Amém".

Cantando este belo hino – acompanhado pela composição majestosa de Mozart –, o homem é colocado diante do Deus justo e misericordioso, tão bem representado no ícone do site Padre Paulo Ricardo. "Reúnem-se num só rosto, de forma paradoxal, as duas formas de Deus nos amar: a compaixão e a ira" [13]. "A misericórdia, porém, triunfa do juízo" [14].

Referências

  1. Mozart – Requiem & Mass in C Minor (1991) | Amazon.com.
  2. Sf 1, 15-16.
  3. Catecismo da Igreja Católica, parágrafo 123.
  4. Papa Bento XVI, Exortação Apostólica Verbum Domini, n. 40.
  5. Lc 21, 26.
  6. 1Ts 4, 16.
  7. Ibidem.
  8. Ap 20, 12.
  9. 1Tm 2, 5.
  10. Catecismo da Igreja Católica, parágrafo 1013.
  11. Cf. Jo 8, 1-11.
  12. Mt 25, 41.
  13. Azevedo Jr., Paulo Ricardo de. Um olhar que cura. São Paulo: Editora Canção Nova, 2008. p. 15.
  14. Tg 2, 13.

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