A Semana Santa de 2019 ficará marcada na memória de muitos católicos como uma lembrança perturbadora. De um lado, assistimos boquiabertos às famosas paredes da Catedral de Notre-Dame arderem em chamas por conta de um curto-circuito; do outro, notícias de que um atentado terrorista, no Sri Lanka, havia matado mais de 360 pessoas, durante uma missa no Domingo de Páscoa, provocaram-nos dor e indignação. Diante dessas circunstâncias quase apocalípticas, não nos deixa de vir à mente a indagação dos incrédulos: Ubi est Deus tuus (Sl 42, 3)? Como ainda podemos encontrar Jesus ressuscitado no meio de tanta morte e barbárie?
O Sri Lanka é, em termos espaciais, um Estado mais ou menos do tamanho da Paraíba, localizado ao sul da Índia. Uma tradição antiga conta que o apóstolo São Tomé teria evangelizado aquelas terras. Seja como for, os católicos cingaleses devem o seu batismo aos portugueses que, como narra Camões em Os Lusíadas, “passaram ainda além de Taprobana”, atual Sri Lanka, para difundir a religião e o Império. Hoje, no entanto, o número de católicos no país é bem menor (cerca de 7% da população), e a intimidação dos muçulmanos torna esse pequeno grupo de fiéis um exemplo admirável. Em vez de ódio e vingança, o cardeal Malcolm Ranjith, arcebispo do Sri Lanka, pediu aos seus súditos perdão e misericórdia em resposta aos massacres terroristas de 21 de abril. De nossa parte, cabe-nos também a oração por esses nossos irmãos que, embora tão distantes fisicamente, estão unidos a nós pelos laços espirituais do sacramento.
Esse atentado contra católicos não foi simplesmente um fato isolado de um país marcado pela instabilidade política e religiosa. Como bem notou o patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, o cristianismo, especialmente o católico, é hoje a religião mais perseguida do planeta. Malgrado toda maquiagem da mídia, que tenta relativizar qualquer denúncia a esse respeito, fica cada vez mais visível a hostilização do mundo à Igreja Católica, seja pelo martírio vermelho, com direito a bombas e decapitações, seja pela martírio branco, nas páginas de jornais e afins. Mas é justamente nesse cenário que podemos vislumbrar a única Igreja de Cristo, segundo o testemunho bimilenar dos santos e pontífices.
As cenas horríveis do massacre no Sri Lanka devem nos fazer lembrar da provação final dos cristãos, tal como aparece no livro do Apocalipse. Naquelas páginas de batalhas e glórias, São João descreve a visão das “almas dos homens imolados por causa da Palavra de Deus e por causa do testemunho de que eram depositários” (6, 9) . Essas almas gritavam em alta voz, debaixo do altar do Senhor: “Até quando tu, que és o Senhor, o Santo, o Verdadeiro, ficarás sem fazer justiça e sem vingar o nosso sangue contra os habitantes da terra?” (6, 10)
A questão imposta por essas almas é muito provocante. Não seria essa a mesma pergunta que agora fazemos em meio aos fatos desta Semana Santa? Até quando, Senhor, iremos perecer sob a bota do inimigo? E, contra todo desespero e desolação, o mesmo apóstolo vaticina a vitória de Cristo sobre a morte: “Foi então dada a cada um deles uma veste branca, e foi-lhes dito que aguardassem ainda um pouco, até que se completasse o número dos companheiros de serviço e irmãos que estavam com eles para serem mortos” (6, 11). De fato, Deus não dorme nem permanece ao largo da opressão de seus filhos; Ele apenas espera misericordiosamente pela nossa conversão e permite as nossas tribulações, a fim de nos fazer crescer logo no amor e na generosidade de coração. Depois, poderemos enfim participar do grande banquete celestial, preparado por Deus às almas que vierem da grande tribulação (Ap 7, 14).
Com efeito, devemos nos indagar agora sobre o sentido de nossa vida espiritual. Se fôssemos nós naquele atentado, em dia de Domingo de Páscoa, teríamos morrido em estado de graça? Não seríamos nós, com todos os nossos discursos, ainda relapsos demais quanto à nossa santificação? Afinal, o massacre do Sri Lanka serve de aviso para a nossa conversão pessoal.
O incêndio na Catedral de Notre-Dame, em Paris, pode ter doravante uma conotação, por assim dizer, mais profética que simplesmente trágica. Em entrevista a uma emissora de TV francesa, o Padre Fournier, capelão principal da Brigada de Bombeiros de Paris, contou como salvou das chamas o Santíssimo Sacramento e a relíquia da coroa de espinhos de Nosso Senhor. Os relatos impressionam. “Ao entrar na Catedral”, dizia ele, “ela está um pouco tomada pela fumaça. Ainda não havia calor. A nossa frente tínhamos uma espécie de visão daquilo que poderia ser o inferno”. Um templo sagrado, cujas paredes outrora “ouviram” as preces de Santo Tomás de Aquino a São Luís de Montfort, ardendo em fogo como se fosse o inferno. Tal visão não deveria nos fazer meditar sobre o estado de uma alma em pecado mortal? De fato, essa não seria uma reprodução bastante exata das almas que fizeram de seus corpos instrumentos de perdição? Como não recordar aqui dos vaticínios de Nossa Senhora, em Fátima, aos três pastorinhos, sobre as almas que caíam na condenação eterna?
No relato do padre Fornier ainda consta outro fato instigante:
O comandante da Brigada de Bombeiros de Paris, o general Jean Claude Gallet, que foi absolutamente extraordinário, deu as orientações necessárias, não somente no momento oportuno, mas com uma espécie de intuição extraordinária que permitiu que este monumento fosse preservado e não fosse colocado numa situação de perigo.
Quando o fogo começou a atingir a torre norte, e tivemos medo de perdê-la, foi no momento exato em que eu peguei o Santíssimo. Assim, eu não quis somente retirar Jesus, eu aproveitei para dar uma Bênção do Santíssimo. Então eu estava sozinho na Catedral, com este ambiente de chamas, de fogo e de coisas incandescentes que caiam do teto, e com esta bênção eu provoquei Jesus e pedi que nos ajudasse a preservar sua casa. Devemos crer que ele nos ouviu! E a manobra do general foi tão brilhante! As duas coisas provavelmente. Aconteceu então que não somente o fogo foi bloqueado, mas salvou-se a torre norte e com ela também a torre sul foi salva (grifos nossos).
A inspiração que o padre Fornier teve de dar a bênção do Santíssimo naquele momento não somente testemunha o quão precioso é o Sacramento da Eucaristia, como nos ajuda a identificar o caminho correto para preservar a casa de Deus, a Igreja, que arde em chamas pelos pecados de tantos infiéis. Mais do que denúncias e anátemas, a hora presente nos pede adoração e reparação. As cinzas que restaram do incêndio de Notre-Dame, interpretou o padre Fornier, relembram as cinzas do início da Quaresma, período de sacrifício pela nossa santificação. Notre-Dame apenas repetiu o mesmo apelo da Senhora a tantos videntes deste e do outro século: penitência, penitência, penitência!
De fato, Deus permite que a liberdade humana faça o mal para dele retirar um bem maior. Por isso, podemos crer que Jesus está presente nessas circunstâncias, assim como esteve presente na caminhada dos discípulos de Emaús; Ele não está morto e, em razão disso, não devemos procurá-lo nos cemitérios. A pedra não precisou rolar do túmulo para que Ele saísse, uma vez que Jesus ressuscitado não está limitado pelas coisas deste mundo, mas para que nós pudéssemos entrar e crer. Neste sentido, devemos pedir ao Senhor que retire de nossos caminhos os obstáculos contra a fé, a fim de, mesmo na perseguição e nas chamas, continuarmos a cantar a uma só voz: “Sanctus, Sanctus, Sanctus, Dominus Deus sabaoth… Benedictus qui venit in nomine Domini”.
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