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O Coração Eucarístico de Jesus

Só “fomentando de modo especial o culto ao Coração Eucarístico de Jesus”, ensina-nos o Papa Pio XII, poderemos compreender “o ímpeto de amor com que Jesus Cristo se deu a nós como alimento espiritual”. Mas o que é o Coração Eucarístico de Jesus e de que modo pode esta devoção iluminar a nossa vida interior?

Texto do episódio
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Na segunda sexta-feira após a celebração de Corpus Christi, a Igreja rende glórias solenes ao Sagrado Coração de Jesus. É uma data conhecida e venerada por todos os católicos. O que muitos não sabem, porém, é que, dentro da Oitava dessa mesma solenidade, numa quinta-feira, dia comumente dedicado à Eucaristia, a Liturgia prevê a possibilidade de outra memória: a do Coração Eucarístico de Jesus.

Essa devoção surgiu ainda no séc. XIX. Por iniciativa do Papa Leão XIII, erigiu-se em Roma, na igreja de São Joaquim, dos Padres Redentoristas, uma confraria ao Sagrado Coração, que deveria dedicar-se, entre outras coisas, ao culto do Coração Eucarístico de Jesus. Depois, já no pontificado de Bento XV, a festa ganhou um ofício próprio para ser celebrada em todas as igrejas, na quinta-feira da Oitava do Sagrado Coração de Jesus. E essa disposição se manteve igual até a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, que retirou o caráter obrigatório da celebração. Daí o desconhecimento de muitos católicos.

De qualquer modo, o formulário da Festa do Coração Eucarístico de Jesus ainda existe no Missal próprio dos redentoristas e pode ser usado por todo sacerdote que deseje celebrá-la, segundo o Novus Ordo. Para os seguidores do rito extraordinário, há um apêndice no Missal de 1962 com o formulário da celebração. Além disso, há também a possibilidade de se rezar uma Missa votiva da Eucaristia, conforme o Missal de Paulo VI. O importante, nisso tudo, é a meditação sobre a grandeza do Coração Eucarístico de Jesus, pelas seguintes razões:

Razão espiritual. — Em primeiro lugar, o culto ao Coração Eucarístico de Jesus é, do ponto de vista espiritual, uma oportunidade para os fiéis (especialmente os sacerdotes) receberem a chamada “graça joanina”. A expressão aparece no livro In Sinu Iesu, que é uma compilação de várias cartas e locuções interiores de um monge irlandês, anotadas em seu diário espiritual desde 2007. Em seus diálogos com Cristo e Nossa Senhora, ele fala 120 vezes do “Coração Eucarístico” de Nosso Senhor. Eis o que lemos em um desses registros:

Meu Coração Eucarístico transborda de amor pelos meus sacerdotes. Daria a cada um deles a graça que dei a São João, meu discípulo amado: a graça da intimidade com meu Coração e com o Coração Doloroso e Imaculado de minha Mãe [1].

O texto nos indica que Cristo deseja renovar verdadeiramente o sacerdócio na Igreja. Para isso, no entanto, os padres devem imitar a atitude de S. João, na Última Ceia, quando ele se reclinou sobre o peito de Nosso Senhor. O “discípulo amado” ouviu as palpitações daquele santo Coração, que iria se doar totalmente no sacramento da Eucaristia. Foi o impulso necessário para que S. João se mantivesse firme nas horas de agonia na Paixão. Do mesmo modo, os padres precisam voltar-se à adoração eucarística, a fim de receberem a graça de S. João.

Razão teológica. — Toda espiritualidade precisa estar bem firmada na verdade, para que não seja mera expressão de um sentimento vago e infundado. Mais do que uma piedade popular, portanto, o culto ao Coração Eucarístico possui bases sólidas no Magistério e nos trabalhos teológicos, como assinala o Pe. Reginald Garrigou-Lagrange, O.P., grande mestre da teologia mística e exímio tomista. 

A respeito do Coração Eucarístico de Jesus, ele recorda a máxima que S. Tomás de Aquino aplica à natureza de Deus: bonum est diffusivum sui (STh III 1, 1). É próprio da essência do bem derramar-se como água, difundir-se, transbordar… E o mesmo sucede com o Sumo Bem: Deus não pode desejar outra coisa senão doar-se completamente, de tal forma que o Filho é gerado para receber a doação de amor, desde toda a eternidade.

Dessa maneira, o Deus uno e trino também deseja ardentemente estar em comunhão com o gênero humano, doando-se a nós na Pessoa do Filho, que se encarnou para redimir, um a um, os seres humanos. Sim, Nosso Senhor poderia ter realizado a redenção de mil e uma formas, mas quis assumir um Coração humano, para identificar-se plenamente com a nossa condição. Em razão disso, podemos concluir que, durante a Última Ceia, enquanto Nosso Senhor consagrava as espécies eucarísticas, Ele não pensava apenas nos seus discípulos ali presentes, mas também naqueles que creriam pela palavra deles (cf. Jo 17, 20).

A conexão entre o Coração de Jesus e a Eucaristia é tamanha que o Papa Pio XII, na encíclica Haurietis Aquas, chegou mesmo a advertir:

Nem será fácil entender o ímpeto do amor com que Jesus Cristo se deu a nós por alimento espiritual se não é fomentando a devoção ao coração eucarístico de Jesus; a qual — para nos valermos das palavras do nosso predecessor Leão XIII, de feliz memória — nos recorda “aquele ato de amor supremo com que, entornando todas as riquezas do seu Coração, a fim de prolongar a sua estada conosco até a consumação dos séculos, o nosso Redentor instituiu o adorável sacramento da Eucaristia”. Certamente, “não é pequena a parte que na Eucaristia teve o seu Coração, sendo tão grande o amor do seu Coração com que ele no-la deu” (n. 72, grifos nossos).

A oferta generosa com que Jesus se doou a nós não ficou no passado. “Esta oblação interior”, comenta o Pe Garrigou-Lagrange, “sempre viva no Coração de Cristo, é como a alma do santo sacrifício da Missa, e confere a ela seu infinito valor” [2]. Do céu, Jesus permanece intercedendo por nós, unido ao sacrifício eucarístico, mantendo em seu Coração a mesma oblação generosa, pela qual somos redimidos. Por isso, diante do sacrário, temos de pedir a graça de enxergar para além do véu das espécies eucarísticas. Devemos contemplar a doação infinita de Deus aos homens, seguindo o princípio tomista de que a Eucaristia é para cada indivíduo aquilo que a Encarnação é para a humanidade.

O Cardeal Raymond Burke ressalta, outrossim, que o novo Povo de Deus é “chamado à vida a partir do coração trespassado e mantido em vida pelo coração glorioso de Cristo, agora sentado à direita do Pai” [3]. Ou seja, do Coração de Cristo, do qual jorraram água e sangue, símbolos do Batismo e da Eucaristia, nasceu a Igreja, que é sustentada e mantida na história pelo sacrifício perpétuo de Nosso Senhor no altar. E esse mesmo Coração trespassado, agora glorioso no céu, mantém-se resoluto em sua entrega pela redenção do gênero humano. Por isso, diante de tal oferta generosa e irrevogável, devemos nos sentir impelidos a uma resposta de amor.

Os efeitos dessa devoção. — No mesmo livro In Sinu Iesu, Nosso Senhor diz que é seu desejo cumular os sacerdotes de grandes bênçãos e dons prodigiosos, como aqueles do início da Igreja. Mas, diz Jesus, “são eles que dão as costas à minha Face Eucarística e negam amizade e conforto ao meu Coração Eucarístico” [4]. Oportunamente, o próprio Papa S. João Paulo II falou do “rosto eucarístico” na encíclica Ecclesia de Eucharistia, propondo a todos os fiéis, sobretudo aos sacerdotes, a “centralidade da Eucaristia” (n. 7).

E isso porque, na adoração do Santíssimo Sacramento, reclinamos nossas cabeças sobre o peito de Jesus, tornando-nos testemunhas solenes do seu amor, como foi S. João na hora da cruz: “Aquele que viu dá testemunho, e o seu testemunho é verdadeiro, e ele sabe que fala a verdade, para que também vós creiais” (Jo 19, 35). Daí a necessidade urgente de voltarmos a essa devoção. A contemplação do Coração Eucarístico deve aumentar nosso fervor na Eucaristia, levando-nos a comunhões cada vez mais piedosas. E, por meio dessas comunhões, Jesus pretende operar um verdadeiro transplante de coração em nossas vidas, conforme a profecia de Ezequiel: “Tirarei de vosso corpo o coração de pedra e vos darei um coração de carne” (Ez 36, 26).

Com efeito, Nosso Senhor recomenda ao monge irlandês que, em todas as quinta-feiras, os fiéis meditem diante do sacrário sobre os capítulos 13 a 17 do Evangelho de S. João, em que Ele e os discípulos se preparam para a Última Ceia. Curiosamente, a antífona de entrada da Missa do Coração Eucarístico é retirada justamente do versículo 1, do capítulo 13 do Evangelho segundo S. João: “Sabendo Jesus que tinha chegado sua hora de passar deste mundo ao Pai, tendo amado os seus que estavam neste mundo, amou-os até o fim”

É que, no sacrifício de Jesus, do qual a Eucaristia é sinal real e eficaz, manifestou-se aquela hora da qual Ele havia falado à sua Mãe SS. A hora em que Ele deveria amar até o fim. A meditação desse mistério, consequentemente, precisa nos levar à mesma entrega. Somos chamados a amar Jesus de volta com um holocausto de amor, doando-nos integralmente.

Excelência do Coração Eucarístico. — A expressão “Coração eucarístico”, finalmente, é de uma excelência superior à do “Coração sacerdotal”, e tudo porque, como explica o Pe. Garrigou-Lagrange, a Eucaristia está acima do sacerdócio, e apenas Jesus, de modo estrito, pode oferecer tal gênero de sacrifício eucarístico, ao passo que um Cura d’Ars também pode receber o título de “coração sacerdotal”, por exemplo [5]. Portanto, para que sejam santos sacerdotes, todos os ministros ordenados precisam pôr-se a serviço e em adoração do augusto Coração Eucarístico de Jesus.

Peçamos, então, ao Senhor que gere em nós uma devoção maior ao Sacramento que brotou de seu lado aberto na cruz:

Senhor Jesus, quero vos pedir que transporteis o meu coração até um sacrário, mas quero pedir a graça de ir até um sacrário específico: até onde sois mais abandonado e esquecido. 

Quero transportar meu coração até aquele sacrário diante do qual as pessoas passam sem fazer a genuflexão, sem se darem conta de que vós estais lá, sem se deterem um minuto sequer para vos adorar.

Quero, Senhor, ir até aquele sacrário onde vós sois recebido por comunhões sacrílegas, indiferentes, frias e ingratas. 

Quero ir, Senhor, até aquele sacrário onde vós sois profanado. 

Quero dizer: enviai, Senhor, até lá o meu coração, o meu Anjo da Guarda, para que eu possa hoje adorar o vosso Coração Eucarístico, que se doa a uma humanidade indiferente, que não quer ser amada por vós. 

Senhor Jesus, eu quero confessar e pedir perdão por tantas comunhões sacrílegas que fiz em minha vida, tantas comunhões indiferentes que recebi, pelas inúmeras vezes em que circulei pela igreja diante de vossa presença santíssima, no sacrário, sem vos dar nem um pouco do amor que esperáveis.

Quero então, Senhor, espiritualmente presente diante desse sacrário esquecido, vos pedir: ajudai-me a baixar o escudo diante de vós. Sou só um homenzinho, um homúnculo, um nada, um miserável, um vermezinho fétido, chagado, purulento. Eu não sei vos amar. Eu só sei, Senhor, como o primitivo Adão, me esconder atrás do arbusto, me esconder atrás deste escudo que me impede de viver a vossa amizade porque eu tenho medo de vós. 

Mas, Senhor, curai-me; enviai vossa Mãe Santíssima, a mulher prometida no Jardim do Éden, que geraria a descendência em cujo poder a serpente seria esmagada. Que no seu coração de amor, Coração Imaculado que soube amar o vosso Coração Eucarístico, ela gere o meu coração, para que eu possa corresponder verdadeiramente ao vosso amor, Senhor. 

Meu Jesus, somente vós sois fonte de amor. Somente vós sois capaz de pegar este meu coração de pedra e transformá-lo num coração de carne. Eu vos louvo e agradeço porque destes domínio sobre o meu coração à vossa Mãe Santíssima, para que ela, como ministra de vossa vontade bondosa e divina, transforme este coração; ela que gerou em suas entranhas imaculadas e virginais este coração que é o vosso, e em sua própria alma recebeu a vossa alma santíssima para amar-vos. 

Com que amor a Virgem Maria recebia a comunhão e adorava a vossa Divina Presença na Eucaristia das mãos de São João. Eu quero vos pedir, Jesus, a graça de nunca mais ser indiferente à vossa presença eucarística e de vos adorar junto com vossos santos e vossos anjos, junto com a Virgem Maria, porque somente assim sereis adorado como mereceis ser adorado. 

Graças e louvores se deem a cada momento ao Santíssimo e Diviníssimo Sacramento! 

Graças e louvores se deem a cada momento ao Coração Eucarístico transbordante de amor de nosso divino e amado Redentor!

Referências

  1. Um monge beneditino, In Sinu Jesu: quando o Coração fala ao coração: o diário de um sacerdote em oração. Campinas: Ecclesiae, 2019, p. 33.
  2. Pe. Reginald Garrigou-Lagrange, El Salvador y su amor por nosotros. Madri: Rialp, 1977, p. 385.
  3. Cardeal Raymond Burke, O amor divino encarnado: a Sagrada Eucaristia como sacramento da caridade. Campinas: Ecclesiae, 2017, p. 29.
  4. Um monge beneditino, op. cit., p. 33.
  5. Pe. Reginald Garrigou-Lagrange, op. cit., p. 383.

Bibliografia

  • Um monge beneditino, In Sinu Jesu: quando o Coração fala ao coração: o diário de um sacerdote em oração. Campinas: Ecclesiae, 2019.
  • Cardeal Raymond Burke, O amor divino encarnado: a Sagrada Eucaristia como sacramento da caridade. Campinas: Ecclesiae, 2017.
  • Pe. Reginald Garrigou-Lagrange, El Salvador y su amor por nosotros. Madri: Rialp, 1977.
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