"Depositum custodi, Guarda o depósito que te foi confiado!" (1 Tm 6, 20). Com estas palavras o Bem-aventurado Apóstolo Paulo, cuja feliz memória a Igreja hoje celebra, exorta seu caro discípulo e colaborador Timóteo a conservar e administrar a herança que lhe fora entregue. Esse apelo premente a acolher a tradição apostólica é, em última análise, a linha diretiva fundamental que São Paulo recomenda aos pastores, especialmente aos epíscopos, e que irá, já no primeiro século, informar e disciplinar a vida das comunidades cristãs então nascentes [1]. A comunicação contínua e fiel deste sagrado depósito, com efeito, é o meio por que a Igreja, "em sua doutrina, vida e culto, perpetua e transmite a todas as gerações tudo o que ela é, tudo o que crê." [2] "Nós não transgredimos os antigos marcos fixados por nossos Pais" (cf. Pr 22, 28), diz São João Damasceno, "mas, ao contrário, conservamos e guardamos as tradições tal qual as recebemos." [3] A presença vivificante desta grande Tradição é a garantia de que a Igreja, fiel a tudo o que os Doze Apóstolos do Cordeiro (cf. Ap 2, 14) receberam do próprio Senhor Jesus e, inspirados pelo Espírito Santo, transmitiram às primeiras gerações, preserva ainda hoje a nota essencial de sua apostolicidade [4], porque, "mesmo se em pequeninas coisas começássemos a desmantelar o edifício da Igreja", continua São João Damasceno, "todo ele em breve viria abaixo." [5]
A necessidade de anunciar a todas as gentes o Evangelho de Jesus Cristo, Verbo feito carne, provém do infinito amor com que Deus, no mistério de Sua benevolência, deseja que todos sejamos salvos e cheguemos ao conhecimento da verdade (cf. 1 Tm 2, 4) que liberta (cf. Hb 2, 14-5), ou seja, do Seu próprio Filho Unigênito, que, detendo a chave do Hades (cf. Ap 1, 18), nos tira da "alienação do pecado e da morte" [6]. Por isso, aprouve a Deus preservar em sua pureza aquelas coisas que revelara para a nossa salvação [7], a fim de que fossem íntegra e fielmente transmitidas a todos os povos e a todos os homens. Tendo, assim, ordenado aos Apóstolos, chamados desde o princípio para estarem com Ele e pregarem a Palavra (cf. Mc 3, 13), que iniciassem e plantassem a Igreja [8], na qual, sob a condução do Espírito Santo, a fonte de toda verdade salvífica está depositada, Cristo quis que o Seu Evangelho fosse conservado inalterado "por uma sucessão contínua, até à consumação dos séculos." [9] Trata-se, portanto, de transmitir e conservar, antes de mais, a fé apostólica: "Eu vos lembro, irmãos, o Evangelho que vos preguei, e que tendes acolhido, no qual estais firmemente. [...] Eu vos transmiti primeiramente o que eu mesmo havia recebido" (1 Cor 15, 1-3).
Trata-se, em segundo lugar, de guardar o patrimônio constituído pelo que os Apóstolos, conforme o que aprenderam da convivência com Cristo e das sugestões do Espírito Santo [10], nos legaram por escrito ou oralmente e que vem, de cristão em cristão, de geração em geração, enriquecendo e se transfundindo "na praxe e na vida da Igreja crente e orante" [11], a qual unicamente pode reclamar para si o direito de propriedade sobre essas riquezas que testemunham de modo inequívoco o canal apostólico por que chegaram até nós e as origens da mesma Igreja, construída sobre o fundamento dos Apóstolos (cf. Ef 2, 20). Diz, nesse sentido, São Basílio Magno:
Dentre as verdades e os ensinamentos conservados na Igreja, alguns chegaram até nós pela transmissão de uma doutrina escrita; alguns, porém, transmitidos em segredo [in mysterio tradita], nós os recebemos da tradição dos Apóstolos. Ora, uns e outros têm a mesma força quanto à piedade, e ninguém, por menos instruído que seja a respeito das instituições da Igreja, poderá negá-lo. De fato, se ousarmos desprezar como de pouca monta os costumes não transmitidos por escrito, feriremos inadvertidamente o Evangelho em seus mais importantes pontos e, além do mais, esvaziaremos a pregação de todo conteúdo [12].
A fidelidade a este depósito precioso, que remonta àquelas doze colunas santas que Deus pessoalmente escolhera como sustentáculos de Sua Igreja, coluna da verdade (cf. 1 Tm 3, 15), é o que torna apostólica a Santa Igreja Romana, que, em meio às dificuldades e exigências deste nosso tempo, peregrina em direção à sua consumação celeste. Deste modo, não cessando Deus de falar ao Seu Povo por meio desta Tradição, "a comunicação que o Pai fez de Si mesmo por Seu Verbo no Espírito Santo permanece presente e atuante na Igreja" [13], sempre atenta às "salutares palavras ouvidas da boca dos Apóstolos" [14]. É ainda a mesma autoridade apostólica que ensina, santifica e dirige a Igreja, graças aos que, "sem qualquer ruptura e interpolação" [15], sucedem aos mesmos Apóstolos no múnus de reger a Igreja até ao final dos tempos, a saber: o colégio episcopal, "assistido pelos presbíteros em união com o sucessor de Pedro, pastor supremo da Igreja." [16] Tal continuidade, ao excluir qualquer interrupção, por menor que seja, conta com a assistência do próprio Cristo, que garantira: "Eis que estarei convosco todos os dias" (Mt 28, 20).
Assim, para que o Evangelho sempre se conserve "íntegro e vivo na Igreja" [17], os Apóstolos, ao transmitir aos seus sucessores não só o que aprenderam de Nosso Senhor como também a autoridade que por Ele lhes foi conferida, continuam a exortar-nos, por meio dos bispos, a conservar e manter as "tradições que aprenderam e a combater pela fé uma vez <para sempre> a eles transmitidas (cf. Jd 3)." [18]. O dever, pois, que cada fiel tem de preservar e comunicar tudo quanto vem dos Apóstolos e sempre foi crido e ensinado em todas as épocas, em todos os lugares [19], deriva da missão que o Senhor confiou à Sua Igreja e que ela cumpre desde Pentecostes: guardar o depósito da fé [20]. Ora, essa herança que nos foi deixada e que temos o dever de transmitir às novas gerações de fiéis, lembra o Concílio Vaticano II, "abrange tudo o que contribui para a vida santa do Povo de Deus e para o aumento da sua fé" [21].
Dentre os elementos que constituem e manifestam a vida e a santidade da Tradição Apostólica, os Sagrados Mistérios—e de modo especial a liturgia—ocupam um lugar de destaque. De fato, quando a Igreja celebra os sacramentos instituídos por Nosso Senhor, ela confessa e professa o que recebeu dos Apóstolos, exibindo pela oração o que crê pela fé e almeja pela esperança [22]. Devido a essa conexão entre fé orante e oração crente, "nenhum rito sacramental pode ser modificado ou manipulado ao arbítrio do ministro ou da comunidade." [23] Por isso, as solenes e venerandas cerimônias que acompanham a administração dos diversos sacramentos, se bem não se refiram tanto à essência e à substância deles quanto à utilidade e à piedade dos fiéis, expressam ao seu modo os tesouros da fé cristã e prestam um auxílio à nossa natureza, "que não se consegue elevar facilmente à meditação das realidades divinas sem recursos exteriores." [24] Servindo-se, assim, da disciplina e tradição apostólicas, respeitosamente conservadas ao longo da história, a Igreja, "mãe piedosa" [25], embeleza os seus mistérios com certos ritos e sinais sensíveis, a fim de que as coisas santas sejam santamente tratadas e veneradas e, significada por vários símbolos a admirável eficácia destes sacramentos, nosso espírito seja elevado à contemplação e participação das grandíssimas realidades neles contidas [26].
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