Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
(Lc 7,1-10)
Naquele tempo, quando acabou de falar ao povo que o escutava, Jesus entrou em Cafarnaum. Havia lá um oficial romano que tinha um empregado a quem estimava muito, e que estava doente, à beira da morte. O oficial ouviu falar de Jesus e enviou alguns anciãos dos judeus, para pedirem que Jesus viesse salvar seu empregado. Chegando onde Jesus estava, pediram-lhe com insistência: “O oficial merece que lhe faças este favor, porque ele estima o nosso povo. Ele até nos construiu uma sinagoga”.
Então Jesus pôs-se a caminho com eles. Porém, quando já estava perto da casa, o oficial mandou alguns amigos dizerem a Jesus: “Senhor, não te incomodes, pois não sou digno de que entres em minha casa. Nem mesmo me achei digno de ir pessoalmente a teu encontro. Mas ordena com a tua palavra, e o meu empregado ficará curado. Eu também estou debaixo de autoridade, mas tenho soldados que obedecem às minhas ordens. Se ordeno a um: ‘Vai!’, ele vai; e a outro: ‘Vem!’, ele vem; e ao meu empregado ‘Faze isto!’, e ele o faz’”.
Ouvindo isso, Jesus ficou admirado. Virou-se para a multidão que o seguia, e disse: “Eu vos declaro que nem mesmo em Israel encontrei tamanha fé”. Os mensageiros voltaram para a casa do oficial e encontraram o empregado em perfeita saúde.
I. Reflexão
Celebramos hoje a memória de São João Crisóstomo, o Boca de Ouro. Trata-se de um bispo e Doutor da Igreja muito importante, nascido no séc. IV na cidade de Antioquia, onde os fiéis foram chamados cristãos pela primeira vez. Sua família era católico, mas não o quis batizar logo cedo. João só viria a ser batizado aos 20 anos, mais ou menos, mas sem demora começou a viver com afinco seu batismo. Quis dedicar-se à oração, retirado a uma vida de penitência. De fato, na primeira fase de sua história, João não viveu como padre, pregador ou bispo, mas como monge. Ele retirou-se ao deserto para fazer penitência, jejuar e encontrar-se a sós com Jesus. Isso é fundamental. João, de certa forma, viveu o que Cristo mesmo impusera aos Apóstolos. Com efeito, Jesus primeiro chamou os Apóstolos, dizendo: Vinde, e só depois, os enviou a pregar: Ide. Noutras palavras, é necessário estar com Jesus primeiro, e foi o que fez João Crisóstomo ao recolher-se como monge para conhecer mais o Senhor pela oração.
No entanto, ele acabou adoecendo. A vida no deserto, com tantos jejuns e vigílias, lhe fragilizou a saúde, obrigando-o a voltar para Antioquia. Lá se deu a maravilha. Sendo ele um homem de Deus, tão amigo de Jesus, o bispo logo o identificou e quis ordená-lo sacerdote. (Nisto se vê como é importante que os pregadores se encontrem com Jesus antes de falar sobre Ele, isto é, tenham experiência daquilo de que falam.) Já com 35 anos, São João foi ordenado sacerdote, e foi em Antioquia que ele ganhou a fama de ser crisóstomo, um orador com boca de ouro. Ele realmente conseguia converter as almas. Suas palavras não eram pura retórica, uma beleza vazia que não mudava os corações; eram, ao contrário, um meio eficaz pelo qual a graça de Deus operava maravilhas. Seus sermões chegaram, aliás, a influenciar os destinos de Antioquia, ameaçada pelo imperador com um severo castigo, mas salva do perigo graças à penitência a que o orador conseguiu levar os cidadãos.
O imperador quis então elevá-lo a Patriarca de Constantinopla. João recusou a proposta, desejoso mais da vida simples de padre que dos altos postos na hierarquia da Igreja. O imperador, sem se fazer de rogado, enviou-lhe um mensageiro para o convencer a aceitar a nomeação. Era uma armadilha. João Crisóstomo foi aprisionado numa carruagem. Quando conseguiu escapar, achou-se já em Constantinopla, onde foi prontamente ordenado bispo (a contragosto) e começou sua missão na corte imperial. O imperador, contudo, não se dera conta de que, com a sagração de Crisóstomo, começariam suas dores de cabeça… Crisóstomo não se deixava comprar. Uma vez no palácio dos Patriarcas de Constantinopla, ele transformou o espaço num lugar austero: nada de louças, talheres de prata ou de ouro etc. Era um verdadeiro asceta, um homem que vivia na pobreza e pregava a pobreza. Do púlpito da Catedral de Santa Sofia, dirigia sua palavra de conversão às senhoras daquela corte frívola, todas maquiadas, mais preocupadas com a carne do que com a salvação da própria alma.
O grande pregador começou assim a desagradar; como pastor das almas, não podia deixar acontecer tantos pecados na corte do imperador. Na época, exercia ali grande influência um eunuco chamado Eutrópio, homem perverso e inescrupuloso, sem receios de mandar condenar inocentes, caluniar opositores e destruir carreiras. São João Crisóstomo, naturalmente, começou a pregar contra tantos desmandos. Mas foi o santo, e não o pecador, quem caiu em desgraça aos olhos dos homens. Os nobres, acostumados a jogos de poder, começaram a julgar exagerada a pregação de Crisóstomo. Um dia, cansada de tantos crimes, uma multidão enfurecida saiu à caça de Eutrópio, o qual, temendo pela vida, foi às pressas pedir abrigo a ninguém menos que o Patriarca, que o acolheu e protegeu de um linchamento certo.
Quando a multidão entrou no templo, Crisóstomo mandou que todos se calassem, anunciando que faria um sermão. Pondo-se todos em silêncio, prontos para ouvi-lo, São João puxou uma cortina, e eis que apareceu diante de todos, desfigurado e cheio de medo, Eutrópio! A homilia começou com aquela frase do Eclesiástico: Vaidade das vaidades, tudo é vaidade, ματαιότης ματαιοτήτων, τὰ πάντα ματαιότης. “Vede! O homem, antes glorioso, que em todos mandava como se fosse outro imperador, está aqui, medroso e desfigurado. Vede como tudo é vão, como tudo é passageiro!”, e começou a pregar para o povo. Eutrópio, que caíra em desgraça, tornou-se sem querer motivo de conversão para as almas!
O próximo desafeto foi a imperatriz Eudóxia, esposa de Arcádio. Por causa dela, Crisóstomo foi condenado ao exílio. Alquebrado, levado à força para lugares longínquos, causticado pelo Sol, sem cuidados de saúde, morreu heroicamente, defendendo a verdade da fé. Eudóxia tratou João Crisóstomo como outrora Herodíades recebera a cabeça de São João Batista, feliz e contente com o próprio pecado. São João Crisóstomo está agora na glória do céu, enquanto Eudóxia… não sabemos onde estará. Um homem fiel, um santo de Deus, consagrado à pregação do Evangelho, jamais se calaria, mesmo na corte, rodeado de figuras poderosas e perigosas. — Que São João Crisóstomo interceda por nós e nos dê dias em que os políticos, arrependidos, se abram para ouvir a Palavra de Deus.
II. Comentário exegético
Explicação do texto. — V. 2-5. Como Jesus tivesse entrado em Cafarnaum, aproximaram-se alguns anciãos dos judeus, enviados por certo centurião, rogando que fosse à casa dele para lhe curar um servo (δοῦλος; Mt. παῖς = filho, menino) a quem muito estimava, acamado por uma paralisia e prestes a morrer. Os anciãos falam a Jesus da benevolência da centúria e das suas boas obras em benefício dos judeus. E Jesus disse-lhe(s): Eu irei e o curarei (Mt.). O Senhor disse isto a fim de manifestar a sua misericórdia, ou (com intenção condicionada) talvez para dar ao centurião a oportunidade de manifestar a própria fé.
N.B. — 1) As legiões romanas (formadas cada uma por 6000 soldados de infantaria e 300 cavaleiros) dividiam-se em 10 coortes (de 600 homens); cada coorte constava de 3 manípulos; um manípulo, por sua vez, continha 2 centúrias, a cada uma das quais presidia o correspondente centurião (ἑκατόνταρχος). — 2) Não se sabe ao certo se o centurião mencionado no Evangelho procedia dos legionários romanos ou se estava adstrito ao exército de Herodes. Esta última hipótese é mais verossímil, pois a cidade de Cafarnaum pertencia aos domínios do tetrarca. Da narração de Lc. se depreende ainda que este centurião era prosélito do judaísmo; do contrário, não se poderia entender a atitude e a fala dos anciãos: Ele merece que lhe faças esta graça, porque é amigo da nossa nação, e até nos edificou a sinagoga (Lc 5,4s).
V. 6s. Aproximando-se da casa Jesus com os judeus, mandou-lhes o centurião outros homens — desta vez, amigos — para que em seu nome dissessem ao Mestre: Senhor, não te vexes, expressão com que a Vg traduz μὴ σκύλλου, fóromula grega de rubanidade, i.e. não te incomodes (em vir), porque eu não sou digno… O centurião julga-se indigno de receber Cristo em sua casa, e roga: dic verbo (gr. εἰπὲ λόγῳ; em Mt. μόνον εἰπὲ λόγῳ), i.e. não só: diz com a boca, mas: ordena com uma única palavra, e se fará a cura.
As palavras do centurião transpiram tanta fé, humildade e reverência a Cristo, que a Igreja as introduziu na sagrada Liturgia no momento de administrar a santa Sinaxe: Domine, non sum dignus etc., repetidas seis vezes (três pelo sacerdote, antes de comungar; outras três pelos fiéis, antes de receber a comunhão).
V. 8. (cf. Mt 8,9). Em seguida, dá a razão deste pedido: Pois também (καὶ γάρ concessivo = καίπερ, ainda que) eu sou um homem constituído sob potestade, i.e. subalterno, sujeito à autoridade do comandante e do tribuno, e no entanto tenho soldados às minhas ordens que obedecem prontamente aos meus mandados; quanto mais tu, Senhor, que não estás sob o poder de ninguém, poderás dar ordens às doenças!
V. 9. (cf. Mt 8,10) Ouvindo isto, Jesus admirou-se. Admirou-se, não pelo imprevisto da situação, pois ele tudo sabia, mas porque falou à maneira de quem está surpreso. No entanto, se se considera a ciência de Cristo adquirida, foi verdadeira a admiração, pois houve nele algo conhecido como novo, antes desconhecido segundo este modo de conhecimento, por cuja recente apreensão sentia-se admirado [1]. — E, voltando-se para a multidão que o seguia, disse: Em verdade vos digo que nem em Israel encontrei tanta fé (em Mt. Em ninguém em Israel encontrei tal fé), i.e. desde o início de minha pregação, o que se há de entender não em sentido absoluto, referido a todos em geral, mas relativo, ou seja, referido aos que se aproximavam do Senhor, sobretudo aos que lhe pediam milagres.
Note-se a diferença entre a fé do centurião no poder de Cristo e a fé do funcionário real, que rogara a presença corporal de Cristo (cf. 4,49). Marta mesmo, após conviver muito com o Mestre, chegou a confiar antes na oração que no mero poder de Cristo (cf. Jo 11,21ss).
— Mt. (cf. 8,11) introduz aqui a pregação sobre a vocação dos gentios, colocada por Lc noutra ocasião (cf. 13,28). O contexto de Lc. é mais congruente, mas tampouco é inadequado o de Mt., pois “a fé do centurião foi como certo prelúdio e exemplar da fé dos gentios” (Knabenbauer). Digo-vos pois que virão muitos não judeus do Oriente e do Ocidente, i.e. de todas as partes do mundo, e se sentarão com Abraão, Isaac e Jacob no reino dos céus (cf. Ml 1,11), i.e. terão a mesma sorte que os egrégios progenitores do povo judeus, entrarão no reino de Deus com o mesmo direito que eles. A felicidade messiânica é descrita frequentemente como um banquete ou festim tanto na Sagrada Escritura (cf. Is 25,6ss; Sl 35,9; Lc 14,15; Mt 22,1; Ap 19,9 etc.) quanto nos escritos rabínicos. Trata-se de uma ótima imagem, que põe diante dos olhos, em cores vivas, a alegria dos habitantes do reino, i.e. a segurança, a comunhão de bens etc.
V. 12. Ao mesmo tempo, prenuncia Jesus a reprovação dos judeus, por causa de sua infidelidade: Os filhos (i.e. herdeiros) do reino, aos quais este fora prometido de modo especial, e para o qual foram chamados primeiro que os outros povos, serão lançados nas trevas. Entre os judeus, com efeito, os banquetes costumavam ser celebrados à noite, sob a luz de lâmpadas e tochas, enquanto os que não haviam sido convidados permaneciam de fora, na escuridão da noite. (Antigamente, as ruas das cidades careciam totalmente de luz.) Assim, pois, como os banquetes são símbolo da glória celeste, assim também as trevas exteriores, o choro e o ranger de dentes significam o desespero dos excluídos da festa (em sentido escatológico: dos réprobos). — Choro e ranger de dentes não são sinais de frio ou baixa temperatura, mas de desolação espiritual; ali porém haverá, quer dizer, “o que se padece aqui na terra não é digno do nome sofrimento, mas ah! o que lá se há de padecer…!”.
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