I. Introdução
Situados no riquíssimo horizonte da dignidade da mulher, dedicaremos esta aula a um tema que, devido à atmosfera supersexualizada que hoje nos rodeia, costuma gerar alguma estranheza e até mesmo certo desdém: a virgindade. Tendo em vista que "todos os fiéis, de qualquer estado ou condição, são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade" [1], procuraremos esclarecer como a virgindade consagrada, desdobramento da graça batismal [2] e participação na entrega plena de Jesus Cristo ao Pai e à Igreja, constitui para a mulher um caminho de santificação pelo qual, "diversamente do matrimônio, ela realiza a sua personalidade de mulher" [3] e dá testemunho da preeminência do vínculo com Cristo sobre todas as coisas (cf. Mt 19, 27) [4]. A base das reflexões de hoje será, além da Carta Apostólica "Mulieris Dignitatem", a 80.ª catequese de João Paulo II sobre a continência por amor do Reino de Deus e o significado esponsal do corpo [5].
II. Aspectos gerais da sexualidade humana
§ 1. Seu caráter único. — Antes de vermos em que consiste a vocação ao celibato, parece-nos necessário fazer alguns apontamentos preliminares. A mentalidade moderna, como bem advertiu o Papa João Paulo II [6], acostumou-se a olhar para a sexualidade humana sob a perspectiva de um suposto "instinto sexual", ora reduzindo o que neste domínio é distintivamente humano àquilo que é comum à generalidade dos seres vivos, ora transferindo para a nossa realidade o que, ao contrário, é próprio do comportamento sexual dos brutos (animalia). O problema por trás da aplicação ao terreno humano de uma categoria "substancialmente naturalística" [7] e, por isso mesmo, bastante unilateral e inadequada, consiste, por assim dizer, numa espécie de mutilação da realidade. É fato que, de um ponto de vista biológico, há entre nós e o mundo animal certas semelhanças e correspondências anatômicas, funcionais e às vezes comportamentais; o ser humano, com efeito, não é uma criatura a tal ponto peculiar e estranha à realidade natural que não possa "ser qualificado, também, como animal" [8]. Mas, apesar das analogias que se possam estabelecer [9], o homem, feito à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26), não deixa de ser um ser racional e, portanto, essencialmente distinto dos demais seres vivos.
Ora, o termo "instinto sexual" compreende um conjunto de reações inconscientes e de certo modo automáticas que, nos animais, carece de qualquer sentido ou finalidade para além da mera perpetuação da espécie; por serem irracionais, os brutos são incapazes de apreender qualquer significado daquilo que, para eles, é uma atividade inscrita no âmbito da pura necessidade, e não da livre escolha. O homem, no entanto, é um composto harmonicamente ambivalente de corpo e alma; neste sentido, ele não pode, sem limitar e diminuir a própria natureza, restringir-se à esfera da só animalidade e das necessidades fisiológicas mais pujantes, pois aquilo que aos animais se apresenta como imperativo da natureza, para o homem é sinal—cristalizado na ordem orgânica pela dualidade em que foi constituído como varão ou mulher—da comunhão interpessoal entre ele e seu Criador [10]. Isto significa, noutras palavras, que a sexualidade humana, radicada na essencial complementaridade dos sexos, supõe no homem e na mulher uma "«unidade de dois» na comum humanidade". À parte sua função biológica, a união sexual simboliza, em nós, a comunhão de amor "que é própria de Deus, pela qual as três Pessoas se amam no íntimo mistério da única vida divina" [11].
§ 2. Sua dependência de um sentido. — Aqui parece residir a dificuldade de o ensinamento católico a este respeito ser hoje assimilado ou ao menos compreendido, pois o mundo contemporâneo, sob influências que por ora não convém precisar, habituou-se a ver no homem um animal entre outros. Se para algumas correntes psicanalíticas, de um lado, a causa primária das neuroses e, por conseguinte, de toda angústia deve ser procurada numa racionalidade que, ao invés do que ocorre com os bichos, obriga a reprimir certas pulsões sexuais, tornando-nos assim algozes de nossa própria natureza, a antropologia cristã, de outro, sempre teve presente que, graças ao elemento espiritual que lhe constitui um aspecto do ser, o homem possui uma sexualidade cuja índole, irredutível a contornos simplesmente biológicos, "supera de modo admirável o que se encontra nos graus inferiores da vida" [12]. Existe, pois, um abismo de distância entre o que os bichos, num nível muitíssimo inferior, vivenciam como ato sexual e o que nós conhecemos por sexo.
A cópula animal, já dissemos, é um ato imperado por uma necessidade da natureza que, manifestando-se em condições determinadas, se ordena tão-só à procriação; trata-se de uma operação que se esgota em si mesma. No entanto, para desempenhar-se de um modo digno do ser humano, o sexo requer um sentido e um propósito para além de seu exercício meramente mecânico, porque, embora tenha sido instituído em ordem à geração de filhos e, portanto, à perpetuação da espécie, ele só pode realizar-se de modo plena e convenientemente satisfatório num contexto que permita garantir "na sua sinceridade e na sua fidelidade a relação interpessoal de um homem e de uma mulher" [13]. Ora, se o ambiente natural e necessário do sexo humano é o matrimônio (cf. 1 Ts 4, 3; Gl 5, 19-21) [14]—o que pressupõe a instauração definitiva de uma comunidade de vida amparada no firme propósito pelo qual os esposos se doam mutuamente—, não é de admirar que toda prática genital ou união física prematura, casual ou carente de sentido deixe a pessoa vazia, frustrada e, como mostra a experiência, muitas vezes irritadiça. "No casamento", diz o Catecismo [15], "a intimidade corporal dos esposos se torna um sinal e um penhor de comunhão espiritual", pois a "sexualidade [...] não é em absoluto algo puramente biológico, mas diz respeito ao núcleo íntimo da pessoa humana" [16] a tal ponto, que, "segundo os dados da pesquisa científica contemporânea", ela "deve ser considerada como um dos fatores que conferem à vida de cada indivíduo os traços principais que a distinguem." [17]
Reduzido pois à sua dinâmica física, o sexo humano deixa de proporcionar aquilo que na verdade está destinado a oferecer: intimidade corporal e afetiva, fortalecimento de um vínculo de amor e de união entre duas pessoas comprometidas uma com a outra. Na medida em que é determinado pelos estímulos adequados, ao animal basta descarregar sua energia sexual num objeto que em si mesmo lhe é indiferente; a cópula, uma vez realizada, cumpriu o seu papel e forneceu ao bruto um gozo físico transitório. Ao homem, porém, a conjunção carnal, só por si, é insuficiente: é necessário, acima de tudo, envolver e engajar a alma, que naquele ato busca um sentido para a sua existência, um vínculo de comunhão que reflita, à sua maneira, a comunhão originária de que gozam as Hipóstases Divinas.
§ 3. Sua dimensão espiritual. — É a partir desta realidade que o Papa João Paulo II nos quer lembrar que a dualidade "macho e fêmea", na esfera humana, alcança um sentido novo e superior ao que se passa com os demais seres vivos. Isso porque Deus, ao criar-nos à Sua imagem e semelhança, conferiu-nos a dignidade de sermos pessoas e senhores de nossos atos: "Deus deixou o homem nas mãos de sua própria decisão", diz o Eclesiástico (Eclo 15, 14) [18]. O caráter pessoal de nossa natureza [19], reflexo pálido e imperfeito da natureza hipostática de Deus Uno e Trino, que, sendo único, não é porém solitário [20], aponta para o fato de que as diferenças física, espiritual e moral dos sexos, orientadas para os bens do casamento e o desabrochar da vida em família [21], supõem uma relacionalidade entre duas pessoas que, sendo total e integralmente queridas por Deus [22], são não só dois corpos que se conjugam como duas almas que se entrelaçam. É a própria estrutura sexual humana, baseada no caráter "pessoal da subjetividade do homem e da mulher" [23], que exige uma complementaridade e fundamenta o que o Pontífice denomina "significado esponsal do corpo", quer dizer: o fato de o homem estar radicalmente dirigido para o outro e para a doação de si.
Com efeito, se olharmos para o corpo humano, podemos perceber que, com exclusão dos genitais, todos os outros órgãos e sistemas têm uma função por assim dizer completa e que se perfaz ainda no próprio organismo; não precisam, para chegar ao termo natural de suas operações, do concurso de outro indivíduo. Os aparelhos digestivo e visual, por exemplo, não requerem nada mais do que alimento e luz, respectivamente, para exercerem o papel que lhes cabe na manutenção da vida. O aparelho reprodutor, todavia, se apresenta como algo incompleto e, se tomado isoladamente, quase absurdo. O aspecto visual mesmo das genitálias já indica que o órgão masculino foi feito para o feminino—são realidades que se completam. A diversidade morfológica e o nexo de complementaridade entre eles são um fato anatômico que, malgrado esteja presente também nos brutos, adquire na esfera humana um significado especial: ele traduz, na ordem espiritual, a necessidade de o homem estar voltado para alguém que o transcende e complementa, isto é, para Deus e para o cônjuge. A solidão adâmica narrada no segundo capítulo do Livro do Gênesis (cf. Gn 2, 18-25), aliás, é um testemunho eloquente de que o Senhor criou o homem para a comunhão, é dizer, fê-lo por natureza chamado à união matrimonial, que o insere "na fidelidade de Cristo à Igreja" e "no poder criador de Deus" [24].
III. O sentido esponsalício do horizonte vocacional humano
§ 4. A vocação fundamental ao amor. — Esta vocação universal ao casamento depende contudo de um chamado ainda mais fundamental, que decorre, como consequência espontânea, da condição de "ser pessoa" em que o Senhor nos formou. Enquanto imagem de Deus, que é amor (cf. Jo 4, 8), o homem é criado primariamente para amar. Amar porém não com um amor de mera concupiscência, que tudo resume a objetos de satisfação pessoal, mas com um amor aberto à generosidade, à semelhança do amor divino [25]. Esta forma superior de entrega de que somente a pessoa é capaz impõe-lhe uma "missão essencialmente interminável, a tarefa de encontrar o ponto em que se possua sem se fechar e se ofereça sem se perder" [26], pois o amor humano, exigente que é, não consiste noutra coisa senão no dom de si "feito àquele que se ama, no qual se descobre, se atua a própria bondade na comunhão de pessoas e se aprende o valor de ser amado e de amar." [27] Condição necessária para a realização de sua natureza, esta entrega amorosa a que o ser humano é chamado exige-lhe a oblação integral de seu ser, "na sua unidade corpórea-espiritual." [28] Ela se encarna e expressa, de modo mais vivo e concreto, no caráter fundamentalmente esponsal do corpo, que, mediante a sua masculinidade ou feminilidade, "não é somente fonte de fecundidade e de procriação, como em toda a ordem natural, mas", reclamando algo para além de si mesmo, "encerra desde «o princípio» o atributo «esponsal», isto é, a capacidade de exprimir o amor precisamente pelo qual o homem se torna dom" [29].
§ 5. O verdadeiro Matrimônio. — A doação perfeita de si, pela qual "Deus o leva a oferecer-se por completo" [30], o homem, destinado a participar da bem-aventurança divina, não pode alcança-la nem no curso da história nem por meios humanos. Ela só se tornará realidade no Céu, quando Deus será tudo em todos (cf. 1 Cor, 15, 28). Daqui se vê que, por mais generoso que seja o amor conjugal, ele permanece incapaz de oferecer a unidade e comunhão plenas por que anseia todo espírito humano. Ora, é a partir da natureza ao mesmo tempo sublime e imperfeita do matrimônio que se pode compreender por que Igreja sempre estimou o dom da virgindade, a ponto de sobrepô-lo ao próprio casamento [31]. De fato, o sentido cristão do matrimônio e o valor da virgindade não são realidades conflitantes, porque, provindo ambas do mesmo Deus e Senhor, uma e outra expressam a finalidade oblativa e esponsal da pessoa, criada para unir-se e doar-se ao outro: enquanto a vocação conjugal busca antecipar no matrimônio, figura deste mundo passageiro (cf. Mc 12, 15), a unidade de amor que haverá no Céu, a vocação à virgindade sinaliza a ardente expectativa da alma pelo verdadeiro Esposo e o Grande Matrimônio Celeste que está por vir [32]. Assim resume a Familiaris Consortio:
A virgindade e o celibato pelo Reino de Deus não só não contradizem a dignidade do matrimónio, mas a pressupõem e confirmam. O matrimónio e a virgindade são os dois modos de exprimir e de viver o único Mistério da Aliança de Deus com o seu povo. Quando não se tem apreço pelo matrimónio, não tem lugar a virgindade consagrada; quando a sexualidade humana não é considerada um grande valor dado pelo Criador, perde significado a renúncia pelo Reino dos Céus [33].
IV. O ideal evangélico da virgindade
§ 6. Riqueza simbólica. — Embora independa da distinção sexual [34], é na mulher, disposta por natureza à plena entrega de si no casamento, que a vocação à virgindade encontra sua mais perfeita expressão, porque faz da preservação física do corpo feminino um sinal da esperança escatológica pela união final com Deus [35]. Neste contexto, a virgindade se manifesta também como resposta ao dom total que Cristo, Redentor do gênero humano, faz de Si mesmo, amando-nos até o extremo (cf. Jo 13, 1); por isso, a virgem escolhe dar-se sem reservas e com o coração indiviso ao mesmo Cristo, Esposo divino da Igreja e das almas, "e esta sua doação tende à união, que tem um caráter propriamente espiritual: mediante a ação do Espírito Santo, torna-se «um só espírito» com Cristo-esposo (cf. 1 Cor 6, 17)." [36] Neste sentido, é em sua origem eminentemente cristológica que o mistério da virgindade consagrada pode ser compreendido. De fato, se, por um lado, o celibato perpétuo foi, em certo grau, alheio à mentalidade judaica, a Encarnação do Verbo, por outro, logo dará às primeiras gerações cristãs o fundamento de que a virgindade precisava, pois é o próprio Cristo, Reino de Deus em pessoa, que em mais de uma ocasião "se apresenta como o esposo da Aliança nupcial entre Deus e seu povo" (cf. Mc 2, 19s; Mt, 22, 1-14 e 25, 1-13) [37].
§ 7. A sacralidade do corpo. — Referida à pessoa de Nosso Senhor e sem perder sua tônica escatológica, a virgindade, em seu aspecto físico, marca a sacralidade do corpo feminino, pois é nele que Deus quis fossem formadas novas vidas. Resguardado pelo véu da virgindade, que se identifica aqui com a integridade do hímen, o corpo da mulher pode ser comparado a um santuário em cuja intimidade só deve ingressar o sacerdote. Na relação conjugal, pois, o marido se apresenta como aquele que é digno e capaz de aproximar-se, sem profaná-lo, do templo da vida, que é também, pela graça de Deus, morada do Espírito Santo. A virgindade física, sob este ângulo, diz algo significativo sobre a mulher que assim se preserva: a sua espera pelo esposo. Esta preservação, quando se transfigura numa dedicação livre e exclusiva a Deus, orienta aquela espera para o único e verdadeiro Esposo. A virgindade pelo Senhor—o fazer-se "eunuco" por amor do Reino dos céus (cf. Mt 19, 12)—, deste modo, é um estado de vida "totalmente cristocêntrico e cristiforme" [38]; ele corresponde, em relação ao Matrimônio Celeste, àquilo que deveriam viver os noivos em relação matrimônio da terra: guardar-se para entregar-se. Esse
[...] o ideal evangélico da virgindade, no qual se realizam de forma especial tanto a dignidade como a vocação da mulher. Na virgindade assim entendida exprime-se o assim chamado radicalismo do Evangelho: deixar tudo e seguir Cristo (cf. Mt 19, 27). Isso não pode ser comparado ao simples permanecer solteiros ou celibatários, porque a virgindade não se restringe ao simples "não", mas contém um profundo "sim" na ordem esponsal: o doar-se por amor de modo total e indiviso [39].
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