Vimos que a consagração a Nossa Senhora, tal como explicada por São Luís Maria Grignion de Montfort, implica entregar-se à Virgem por inteiro, em corpo e alma, com seus bens materiais e espirituais. Entregamos casa, família, rendas etc., por um lado, e, por outro, o que na aula passada denominamos valor meritório, satisfatório e impetratório de nossas obras. Tudo isto integra o conjunto de bens consagrados a Maria. Há, porém, que fazer algumas distinções.
O valor meritório, pelo qual adquirimos novas graças atuais e aumentamos nossa glória no céu, é per se incomunicável e intransferível. Por isso, só podemos entregá-lo à Virgem Santíssima para que ela o guarde, ou seja, a fim de que, tendo em mãos estes dons que ao longo da vida fomos entesourando, ela nos conceda a graça de uma contrição o mais perfeita possível se, desgraçadamente, cairmos num pecado mortal e, assim, perdermos tudo o que até então possuíamos.
De fato, é sabido que os méritos perdidos por um pecado grave podem reviver a partir do momento em que voltamos a estar em graça. No entanto, é sentença provável, defendida por ninguém menos que Santo Tomás de Aquino [1], que esses méritos não revivem sempre e necessariamente no mesmo grau que antes, mas conforme as disposições em que se encontrava o pecador ao readquirir a graça. É, portanto, “pura ilusão a que sofre o pecador quando peca tranquilamente, pensando que, depois do pecado, irá recuperar pela penitência tudo o que havia perdido” [2].
Entregando, porém, o valor de nossas obras aos cuidados de Maria, podemos ter a esperança de que, se porventura tivermos a infelicidade de pecar de tal maneira, poderemos contar com seu auxílio e intercessão para, arrependidos de todo coração, recuperarmos a graça e não perdermos nada do que lhe confiáramos. Isto, é claro, de modo nenhum nos autoriza a pecar com tranquilidade. Seria ofender o Coração bondoso de nossa Mãe Santíssima dormir placidamente em vícios de iniquidades sob o pretexto de ser devoto da Virgem, como se ela estivesse obrigada a socorrer os que, durante toda uma vida, pouco se importaram em ferir, traspassar, crucificar e ultrajar impiedosamente a Jesus Cristo, seu Filho [3].
O valor satisfatório, como já foi visto, está vinculado às diversas práticas de reparação, que se ordenam, em último termo, a satisfazer a pena devida pelo pecado, próprio ou alheio. Assim, por exemplo, um fiel pode fazer penitência já nesta vida, a fim de diminuir as penas que ele mesmo ou um terceiro teria de padecer no Purgatório. Pode-se também oferecer sacrifícios a Deus para que ele não puna neste mundo os gravíssimos pecados da humanidade, que tanta injúria fazem ao Criador e reclamam os justos castigos da ira divina. Portanto, ao entregarmos a Nossa Senhora o valor satisfatório de nossas boas obras — jejuns, mortificações, indulgências, vigílias, orações, adorações etc. —, estamos abdicando do direito de oferecê-las por quem quer que seja. A partir de agora, é a Virgem Santíssima que decidirá a quem o valor delas será aplicado. Já não temos mais poder nenhum sobre ele.
E não há desvantagem nenhuma nisto, pois nossa Mãe amada sabe muito melhor do que nós quem tem necessidade desse valor. Ela, que ama e abraça com ternura todos aqueles a quem gostaríamos de socorrer com nossas obras e sacrifícios, ao aceitar-nos como consagrados, aceita também, como coisa sua, nossos amigos, familiares, nossas intenções, projetos etc. De fato,
Não é crível que nossos amigos, parentes ou benfeitores sofram prejuízo por nos termos devotado e consagrado sem reserva ao serviço de Nosso Senhor e de sua Mãe Santíssima. Seria fazer uma injúria ao poder e bondade de Jesus e Maria, que saberão muito bem valer os nossos parentes, amigos e benfeitores, aproveitando o nosso crédito espiritual, ou por outro meio qualquer [4].
Quanto ao valor impetratório, pelo qual rogamos novas graças e mercês a Nossa Senhora, também ele lhe é entregue sem reservas. Tudo o que pedimos, pedimo-lo agora com a consciência de que está, total e integralmente, nas mãos de Maria. Não temos garantia, é verdade, de que receberemos o que pedimos, porque tampouco sabemos pedir o que e como convém (cf. Rm 8, 26; Tg 4, 3). Mas ela, sim, saberá o que nos dar, como nos dar, quando nos dar e em que circunstâncias nos dar. Ela irá não só purificar o egoísmo que tantas vezes subjaz às nossas petições, mas ainda enriquecer com seus próprios méritos os nossos pedidos, apresentando-os ao seu Filho com um novo valor. Além do que,
[...] esta prática não impede que rezemos pelos outros, vivos ou mortos, se bem que a aplicação de nossas boas obras dependa da vontade da Santíssima Virgem; e, bem ao contrário, esta circunstância nos levará a rezar com muito mais confiança, do mesmo modo que uma pessoa rica, que tivesse doado a um grande príncipe todos os seus bens, rogaria com redobrada confiança a esse príncipe que beneficiasse a algum amigo necessitado. Seria até causar prazer a esse príncipe dar-lhe ocasião de demonstrar seu reconhecimento a uma pessoa que de tudo se tivesse despojado para engrandecê-lo, que se tivesse reduzido a completa pobreza para honrá-lo. O mesmo se deve dizer de Nosso Senhor e da Santíssima Virgem: eles jamais se deixarão vencer em reconhecimento [5].
Um consagrado, ao dar tudo, nada perde. Antes, ganha muito por estar nas mãos da Rainha do céu e da terra, da mais gloriosa, exaltada e generosa das criaturas, daquela que pode apresentar ao Rei, como uma oferenda agradável, tudo o que somos e possuímos [6].