A Constituição Dogmática Lumen Gentium, do Concílio Vaticano II, tratou, em seu quinto capítulo, a respeito da “vocação de todos à santidade na Igreja”, ensinando que “os cristãos de qualquer estado ou ordem são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade” [1].
O debate na aula conciliar. – Uma das grandes discussões que antecederam a publicação definitiva da Lumen Gentium, em 1964, era aquela relativa à vida religiosa. Estava claro para toda a Igreja que as pessoas que se consagravam a Deus pelos votos de pobreza, castidade e obediência, estavam em “estado de perfeição”. Como explica o Doutor Angélico:
“Como a suma perfeição humana consiste em o espírito do homem ocupar-se com Deus, e as três tarefas mencionadas [os votos religiosos] parecem que o dispõem para tal ao máximo, vê-se que elas convenientemente pertencem ao estado de perfeição, não que sejam a perfeição, mas porque são disposições para a perfeição, que consiste em ocupar-se com Deus. E isto é claramente manifestado pelas palavras do Senhor que aconselha a pobreza, quando diz: ‘Se quiseres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e segue-me’ (Mt 19, 21), como se a perfeição da vida estivesse constituída no segui-lo.” [2]
O que inquietava os padres conciliares era como falar da santidade em relação ao restante do povo de Deus. Embora o chamado à perfeição tenha sido lançado a todos, desde o início da pregação evangélica (cf. Mt 5, 48), tal lição se tinha obscurecido em certa medida e a visão geral das pessoas era a de que a santidade era para uma elite, sendo que a vasta maioria dos salvos deveria passar pelo purgatório. Isso sem falar da quase totalidade das almas, que seria condenada ao inferno.
Influências heréticas. – Essa visão se agravou, em grande parte, por conta da influência de duas heresias: o protestantismo e o jansenismo.
O protestantismo porque, como já se viu, Martinho Lutero não acreditava na santidade. Na doutrina protestante, a justificação se dá mediante a fé, entendida como “a convicção infalível de que Deus, por causa de Cristo, não nos imputará as nossas faltas, mas tratar-nos-á como se fôssemos realmente justos e santos, ainda que, em nosso interior, sejamos os mesmos pecadores de antes” [3]. É o que se pode depreender da profissão luterana conhecida como Fórmula de Concórdia:
“Mas, quando ensinamos que, por meio da ação do Santo Espírito, somos renascidos e justificados, o sentido não é que, após a regeneração, não remanesça nenhuma injustiça no ser e na vida dos que foram justificados, mas de que Cristo cobre todos os seus pecados, mesmo que, nesta vida, estes ainda pertençam à sua natureza, juntamente com a perfeita obediência de Cristo. Independente disso, os justificados são declarados e imputados justos e piedosos pela fé e por causa da obediência de Cristo (a qual Ele prestou ao Pai por nós, desde o Seu nascimento até a Sua morte ignominiosa na cruz), ainda que, por conta de sua natureza corrompida, eles ainda sejam e permaneçam pecadores até o túmulo (enquanto estiverem nesse corpo mortal).” [4]
Na visão protestante, portanto, o homem, pecador até à medula, só poderia entrar no Céu mediante a fé, que seria como um “manto” a encobrir a essência má e pecadora do ser humano. Os justificados não seriam, pois, santos, mas simples pecadores escondidos por debaixo de um véu.
A doutrina luterana da sola fide chega ao seu extremo em uma conhecida carta de seu fundador a Melâncton, em 1521, na qual ele se expressa nos seguintes termos: “Seja pecador e peque fortemente, mas confie e se alegre mais fortemente ainda em Cristo, vencedor do pecado, da morte e do mundo”; “Basta que pela riqueza da glória tenhamos conhecido o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo; deste não nos separará o pecado, inclusive ainda que forniquemos e matemos milhares e milhares de vezes ao dia” [5]. A tais palavras – vindas da boca do próprio pai do protestantismo –, não é possível responder senão com a indagação de São Paulo: “Nós que já morremos para o pecado, como vamos continuar vivendo nele?” (Rm 6, 2).
Os erros do jansenismo [6], por sua vez, terminavam se aproximando muito da doutrina calvinista da predestinação. Segundo o famoso livro Augustinus, de autoria de Cornélio Jansen († 1638), o homem seria um mero joguete na ação de duas forças irresistíveis: a graça e a concupiscência. Para os jansenistas:
“Como resultado do pecado de Adão, nossa natureza, privada dos elementos essenciais à sua integridade, é radicalmente corrupta e depravada. Dominada pela concupiscência – que em cada um de nós constitui propriamente o pecado original –, a vontade é impotente para resistir; tornou-se puramente passiva. Não pode escapar à atração do mal, exceto se for ajudada por um movimento da graça que supere e triunfe sobre a força da concupiscência. Nossa alma – doravante obediente a nenhum motor senão o do prazer – está à mercê do deleite, terreno ou celeste, o qual, pelo tempo em que existe, atrai-a com grande força. Ao mesmo tempo inevitável e irresistível, esse deleite, se vem do céu ou da graça, conduz o homem à virtude; se vem da natureza ou da concupiscência, obriga o homem ao pecado. Em ambos os casos, a vontade é fatalmente movida pelo impulso preponderante. Os dois deleites, diz Jansênio, são como os dois braços de uma balança, dos quais um não pode se elevar a menos que o outro se abaixe, e vice-versa. Assim, o homem – de modo irresistível, ainda que involuntário – faz ou o bem ou o mal, dependendo se está dominado pela graça ou pela concupiscência; ele nunca resiste nem a um nem a outro.” [7]
Como consequência dessa doutrina, tem-se a quinta proposição de Jansênio condenada pela Igreja (“É semipelagiano dizer que Cristo morreu e derramou seu sangue por todos os homens irrestritamente”), a qual chegava a negar a redenção de Cristo por toda a humanidade: de fato, Nosso Senhor teria morrido somente pelos predestinados, que consistiriam em um número muito reduzido; a grande massa dos cristãos estaria irremediavelmente condenada ao inferno. São da época dessa heresia os crucifixos que retratavam Jesus com os braços quase juntos, simbolizando o pequeno número dos que seriam salvos.
Embora fossem reprovadas pela Igreja em inúmeros documentos, ambas as heresias deixaram as suas influências no ambiente eclesial, deixando na neblina, por assim dizer, a verdade católica sobre a santidade. Era bastante comum a impressão de que as realidades místicas e espirituais estavam realmente reservadas a um grupo reduzido e alheias à maior parte dos fiéis. Nos próprios carmelos, eram proibidas as obras de São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila, tão convencidos estavam os formadores e diretores espirituais dessa opinião.
Por isso, os padres do Concílio Vaticano II decidiram inserir o tema da “vocação universal à santidade” em um capítulo especial do esquema sobre a Igreja. A princípio, as considerações sobre a santidade constariam no mesmo capítulo em que seria tratada a vida religiosa. No intuito de restaurar a doutrina católica sobre o chamado de todos na Igreja à perfeição da caridade, porém, os padres conciliares dedicaram o quinto capítulo da constituição Lumen Gentium especificamente a esse ensinamento. As lições do Concílio nesse sentido deveriam ser chamados propriamente de uma “restauração”. Algumas pessoas usam o termo “revolução”, mas ele não é adequado, porque pressupõe uma reviravolta, quando, na verdade, essa doutrina foi simplesmente colocada em seu devido lugar e melhor aclarada pelo Magistério.
A contribuição dos dominicanos. – Para a restauração desse ensino, contribuíram muito os trabalhos geniais dos teólogos dominicanos. Entre os muitos nomes a serem citados, poder-se-ia começar pelo do padre António Royo Marín, O. P. († 2005), grande sistematizador da teologia tomista, o qual, em sua obra Espiritualidad de los Seglares, dedicou preciosas linhas à “vocação universal à santidade”, proclamada pelo Vaticano II.
Citem-se ainda:
- O frade Juan González Arintero, O. P. († 1928), autor da valiosa obra Cuestiones Místicas o sea Las Alturas de la Contemplación Mística Accesibles a Todos;
- O padre Ambroise Gardeil, O. P. († 1931), autor da obra Le Saint-Esprit dans la Vie Chrétienne [“O Espírito Santo na vida cristã”], na qual ele explica que os dons do Espírito, que tornam os homens capazes da ação divina, foram colocados em todos os batizados e, portanto, todos são chamados à santidade;
- O grande Réginald Garrigou-Lagrange, O. P. († 1964), o qual empreendeu a importante síntese entre a teologia de Santo Tomás de Aquino e a mística carmelitana de São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila, principalmente em sua obra Perfection chrétienne et contemplation selon saint Thomas d’Aquin et saint Jean de la Croix [“Perfeição cristã e contemplação segundo Santo Tomás de Aquino e São João da Cruz”].
- O padre Marie-Michel Philipon, O. P., responsável por fazer o diálogo de toda essa tradição mística com a espiritualidade de Santa Teresinha do Menino Jesus.
Em que consiste a santidade. – O padre Royo Marín define a santidade de três modos: diz que a) o santo é “quem alcançou a perfeita identificação com a vontade de Deus”; b) “quem alcançou a perfeição da caridade”; e c) “quem alcançou a plena configuração a Jesus Cristo”. Nesse caminho para cumprir a vontade divina, a Igreja sempre discerniu três vias – ou três graus de caridade –, as quais são chamadas tradicionalmente de purgativa, iluminativa e unitiva. Essa distinção se encontra, por exemplo, em Santo Agostinho [8] e foi convenientemente explicada por Santo Tomás de Aquino:
“Os diversos graus de caridade distinguem-se pelos diversos esforços aos quais o homem é conduzido para o progresso da sua caridade. Primeiramente, sua principal preocupação deve ser afastar-se do pecado e resistir aos atrativos que o conduzem para o que é contrário à caridade. E isso é próprio dos incipientes, que devem alimentar e estimular a caridade, para que ela não se perca. – Depois, vem uma segunda preocupação, que leva o homem principalmente a progredir no bem. Tal preocupação é própria dos proficientes, que visam sobretudo fortificar sua caridade, aumentando-a. – Enfim, a terceira preocupação é que o homem se esforce, principalmente, por unir-se a Deus e gozá-lo. E isso é próprio dos perfeitos, que ‘desejam morrer e estar com Cristo’.” [9]
Importa discernir que o caminho da perfeição, mais do que algo que nós fazemos, é uma realidade que Deus opera em nós. É Ele quem, por meio de Sua graça e dos sacramentos, vai mudando a nossa alma, transformando o nosso coração de pedra em coração de carne (cf. Ez 36, 26) e fazendo crescer em nós a caridade. Nessa purificação passiva consiste essencialmente a vida mística, enquanto a vida ascética diz respeito aos esforços ativos empreendidos pela alma para se purificar e subir na escada da santidade
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