Na liturgia de hoje, lemos o início do Evangelho de São Marcos (Mc 2, 13-17). É sempre importante entendermos que o autor desse Evangelho, secretário e tradutor de São Pedro, tinha uma intenção muito clara ao contar esses episódios da vida de Jesus. São Marcos não jogou essas histórias a esmo, mas ordenou todos os fatos dentro de uma lógica.
Logo após ser batizado por João, Jesus começa o seu ministério fazendo algo que significa a derrota de Satanás: pregando na sinagoga, Jesus expulsa o demônio. É como se São Marcos nos colocasse uma espécie de recapitulação do livro do Gênesis. O que aconteceu no primeiro livro das Sagradas Escrituras? Primeiro, caiu a Serpente: Satanás já tinha pecado quando começa a nossa história; depois, caiu a mulher e, por convite da mulher, caiu o homem. São Marcos então narra a expulsão de Satanás na sinagoga, a cura da mulher (a sogra de Pedro, que sofria de febre) e a cura do homem (a purificação de um leproso). Aqui, o autor está nos mostrando claramente que se trata de uma batalha do bem contra o mal: é Deus encarnado que veio perturbar Satanás no seu reino.
Satanás reina neste mundo desde que nossos primeiros pais, Adão e Eva, caíram e se colocaram sob seu domínio. Então Jesus já inicia seu ministério expulsando Satanás da sinagoga, curando a sogra de Pedro e o homem leproso, mas vem para fazer isso não por milagres físicos. A mulher de fato estava com febre, o homem realmente tinha lepra, mas tudo isso é símbolo de uma realidade mais profunda: a realidade da salvação e do perdão dos pecados. É por isso que Jesus faz aquele outro milagre em que um homem paralítico, claramente precisando de um milagre físico, recebe o olhar de Jesus, que vê o que ninguém vê: a necessidade do perdão de seus pecados.
É essencial enxergarmos nessa “arquitetura” do Evangelho de São Marcos que a Palavra de Deus, como diz a 1ª Leitura (Hb 4, 12-16), é penetrante, “mais cortante do que qualquer espada de dois gumes.” O olhar de Cristo vê no fundo de nossa alma, e assim vê que as nossas necessidades não são aquelas que enxergamos superficialmente. Basta perguntarmos às pessoas: “Por que você veio para a Igreja?”, para sabermos que todos têm sua lista de pedidos, seja algum problema em sua família, alguma dificuldade econômica, uma questão de saúde ou outras adversidades pessoais.
No entanto, Jesus enxerga outra coisa, pois nos vê profundamente: existe algo mais importante do que tudo o que desejamos, que é a salvação da alma e o perdão dos pecados. Não que Jesus não se importe com esta vida. Pelo contrário, Ele se importa bastante, e isso é o mais bonito. É que Nosso Senhor faz uma coisa mais profunda sem desprezar as outras coisas menores — ainda que sejam pequenos detalhes e quinquilharias diante do que está em jogo para a eternidade —, e essas nossas necessidades temporais são vistas por Ele com sensibilidade. Ele quer — esta é a vontade férrea de Deus — que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade; quer nos salvar, quer perdoar os nossos pecados, quer nos curar do maior mal que temos, o domínio de Satanás sobre nós através do pecado e da morte.
Então Jesus expulsa Satanás da sinagoga, e “livra Eva e Adão”, num projeto que vai muito além das curas físicas. Com o perdão da comparação: é “fácil” transformar a nossa santa religião num terreiro de macumba. O que as pessoas procuram quando vão atrás de um pai ou mãe de santo? Elas nunca vão até lá para perguntar qual é a vontade de Deus; e lá no terreiro não receberão qualquer exortação para que mudem de vida. As pessoas vão até lá para pedir: “Ah, eu quero que tal coisa aconteça na minha vida”. Em contrapartida, o pai ou mãe de santo nunca diz: “Espere, vamos ver qual é a vontade de Deus para a sua vida”. Ora, a lei do terreiro de macumba é: “Seja feita a minha vontade assim na terra como no Céu”.
Jesus, porém, vem destelhar as nossas casas, vem tirar nossos pensamentos e colocar outras coisas novas. Não é a “nossa vontade” que precisa ser feita, somos nós que precisamos mudar de vida. O maior mal é o pecado — nem mesmo a morte física é o maior mal, o maior mal é a morte eterna. É com esse olhar penetrante, com essa palavra que é uma espada de dois gumes que Jesus inicia o Evangelho de hoje. Até aqui, fizemos uma introdução para que todos possam ver o todo; agora, nos debruçaremos sobre os detalhes.
Jesus saiu da casa de Pedro, que Nosso Senhor trata como a sua própria casa em Cafarnaum, e vai para a beira do mar. No caminho, enquanto passava e a multidão o seguia, Jesus notou o que ninguém notou: um pecador sentado na banca da coletoria de impostos. Quem era esse pecador? Levi, que a tradição nos diz que é o mesmo Mateus, um dos doze Apóstolos.
O que Levi/Mateus está fazendo na coletoria de impostos? Pecando! E o pecado era o de se corromper com dinheiro dos impostos. Os publicanos, coletores de impostos daquela época, podiam enriquecer no processo de cobrar as pessoas em nome do Império Romano. Enriqueciam com o dinheiro dos impostos, e de fato eram corruptos. E era exatamente isso, roubando com sua corrupção, o que Levi estava fazendo no momento em que foi chamado por Jesus.
Pois bem, Mateus certamente seria a última pessoa que chamaríamos para ser Apóstolo! Quem de nós, em sã consciência, escolheria para aquele seleto grupo alguém que sabidamente “mama nas tetas do Estado”; pior ainda, alguém que colabora com uma ditadura opressora de seu próprio povo? Quem de nós não vê nisso o mal maior e mais grave do nosso país? O problema do Brasil não é que exista gente querendo implantar uma ditadura, é que existam pessoas prostituídas o suficiente para se vender e permitir que essa ditadura seja implantada.
Enquanto um grupo quer implantar uma ditadura com mão férrea, o outro, como Mateus, se vende, permitindo e colaborando. Existe algo mais desprezível do que ser a própria “prostituta de Satanás”, que permite que o inimigo oprima o povo enquanto se vende por benesses pessoais? É algo de uma imensa venalidade e baixeza moral, a mais abjeta das cumplicidades. Este é Mateus. E Jesus, indo rumo ao mar, o vê.
É como se, em Mateus, Nosso Senhor Jesus Cristo visse o Brasil. É como se visse a baixeza moral do povo brasileiro, de grupos que dizem: “O que nos importa se estão implantando uma ditadura? Deixe-nos quietinhos com nosso lucro irresponsável, ilegal e corrupto”. Jesus olha para a baixeza moral de Mateus, e nós, que jamais confiaríamos em alguém como ele, somos surpreendidos, porque Jesus o chama. Eis a vocação do Brasil! Nossa nação tem uma vocação sublime e altíssima: ser a Terra da Santa Cruz, a terra de um povo evangelizado e evangelizador, verdadeiros discípulos de Cristo e instrumentos de salvação para o mundo, assim como São Mateus.
O Papa Francisco, quando escolheu o seu lema episcopal, optou por uma frase que diz respeito a essa cena: “Miserando atque eligendo” — Jesus teve misericórdia de Mateus e o escolheu. É algo impressionante! Notemos que Jesus não exortou Mateus a se converter primeiro, para depois chamá-lo para ser Apóstolo. Ao contrário, Jesus olhou para aquele vil pecador, um colaboracionista vendido e corrupto, e enquanto ele se corrompia e pecava, disse: “Segue-me!”
Devemos perceber que a nossa vocação e a nossa conversão estão intimamente ligadas. É isso que nos ensina o lema do Santo Padre, “Miserando atque eligendo”: porque somos chamados a ser grandes santos e apóstolos, devemos abandonar o pecado. Nosso Senhor não está impondo inúmeros pré-requisitos, como se dissesse: “Largue o pecado e aí verei o que vou fazer com você; depois, se você se comportar direitinho, se tirar só nota dez com todos os méritos, veremos qual é a sua vocação, e quem sabe um dia eu possa escolher você para ser uma grande santo”. Não é assim! Deus nos chama para uma altíssima vocação mesmo no meio de nossa miséria, pecado e vileza.
O Evangelho de hoje, portanto, é um farol para o Brasil. De forma geral, o brasileiro se acomodou à mediocridade: “Ah, eu vivo no pecado, no carnaval, na droga, no sexo desregrado, no jeitinho brasileiro da venalidade de quem se vende e encontra o seu lugarzinho à sombra. Eu vivo aproveitando! Não podemos ser radicais”. Pois bem, o Evangelho de hoje nos diz que Deus não quer somente que saiamos do Inferno para a mediocridade, mas quer que escapemos do Inferno rumo às alturas de uma vocação de verdadeira santidade. O Brasil é chamado a nada menos do que uma santidade como a de São Mateus: de pecador público, corrupto e vendido a Apóstolo que derramou o seu sangue por Cristo. Um salto impressionante, uma transformação miraculosa! “Miserando atque eligendo”, tendo misericórdia de Mateus, uma vez que não havia outro jeito de salvá-lo, Jesus diz: “Só há uma forma de livrá-lo do Inferno, e é elegendo você para ser um grande Apóstolo e um grande santo!”
Nesse sentido, portanto, só existe uma escolha para o Brasil — e não estamos aqui falando de uma entidade abstrata, mas de cada um de nós mesmos. O Brasil “não existe”, o que existe somos eu e você. Por isso, o Brasil será alguma coisa quando nós mesmos formos alguma coisa. O país cumprirá a sua vocação se cumprirmos a nossa vocação. No entanto, jogamos os braços, derrotados, e dizemos: “Ah, não adianta fazermos nada…” Ora, é claro que adianta! Sabe o que vamos fazer? Buscaremos ser santos, buscaremos fazer penitência, largar os pecados, estudar e rezar, transformando a nossa vida e a da nossa família.
Alguém pode questionar: “Não estamos de mão atadas diante dos extremismos, tanto de esquerda quanto de direita, que estão acontecendo em Brasília?” Claro que não! Há algo que podemos fazer: podemos nos converter e mudar de vida. Podemos nos entregar a Cristo e evangelizar. O Brasil não estaria desencarrilhado como está se seguíssemos nossa vocação de Terra de Santa Cruz, se nos empenhássemos em converter quem está ao nosso lado. Devemos ser apóstolos: grandes santos e grandes santas!
Há pessoas que, equivocadamente, pensam que ser cristão é ir até Brasília e matar em nome de Cristo; mas o cristianismo não é isso. O cristão não é aquele que mata em nome de Cristo, mas aquele que morre por amor a Cristo. Entreguemo-nos! Em nosso dia a dia, abandonemo-nos nos braços de Nossa Senhora, para que possamos cumprir a missão do Evangelho: “Mateus, segue-me!” É Cristo que nos impele: deixe agora a vida de pecado e vá ser um evangelizador!
Resumindo tudo o que dissemos: primeiro, traçamos uma panorâmica do Evangelho de São Marcos, percebendo que Jesus está fazendo milagres físicos, mas como sinais de uma mudança de vida que nos faz abandonar o pecado. Vimos que Nosso Senhor quer nos tirar do pecado como tirou Mateus da corrupta coletoria de impostos; por isso, Jesus derrota Satanás (na sinagoga), cura “Eva” (a sogra de Pedro) e cura “Adão” (o leproso). E no momento em que todos pensam que Jesus veio para resolver os nossos problemas materiais, Ele faz o paralítico andar e diz: “Teus pecados estão perdoados” — ou seja, o problema maior não era o estado das pernas, mas o do coração.
Mas Jesus continua a, novamente, “sair de casa” e ir à nossa procura. Ele vem nos buscar aqui no Brasil, mas onde nos encontra? No “jeitinho brasileiro”; nas contemporâneas coletorias de impostos, nos apropriando do dinheiro alheio; aproveitando um lugar à sombra enquanto colaboramos com um sistema cada vez mais autoritário e ditatorial. Parece ser essa a fotografia do Brasil, mas a conversa de Jesus é com cada um de nós: Ele vem nos chamar pessoalmente para sairmos da comodidade e nos tornarmos grandes santos. Ainda que estejamos desanimados, ou até mesmo em queda, Jesus não quer esperar que alcancemos um “elevado progresso espiritual” para nos escolher. O chamado é agora!
Não precisamos primeiro ser “medíocres” antes de sermos santos. A nossa salvação está não na pusilanimidade, no “meio termo”: Deus quer de nós magnanimidade, coração aberto e alma grande, para sermos os grandes santos que Ele quer que sejamos. O brasileiro, ou seja, você aí mesmo — porque toda nação tem a sua índole, o seu jeito de ser — comumente peca por pusilanimidade, sendo aquele que facilmente diz: “Ah, tá bom, as coisas são assim, né!?... Vou fazer o quê?” Não devemos nos conformar com isso.
Devemos desejar morrer por Cristo! E por essa expressão, queremos dizer: morrer — hoje — para os nossos desejos carnais, para a nossa comodidade, para o “jeitinho brasileiro”. Não olhemos para Brasília, mas para nós mesmos (e depois nos preocupamos com eles na hora de votar). Não caiamos na covardia de dizer: “Ah, não podemos ser radicais”. Ora, por que não podemos ser radicais no bem, no amor, na paciência, no perdão? Podemos e devemos ser radicais dando a nossa vida e derramando o nosso sangue, assim como Cristo que deu a vida e derramou o seu sangue por nós. Como não amar quem nos amou assim? Eis aí a nossa vocação!
Vale a pena meditarmos sobre aquele olhar de Cristo, que encontrou com o de Mateus na coletoria de impostos. Qual é a sua coletoria? Em que pecado você se acomodou? O olhar de Jesus é como a espada penetrante de dois gumes; Ele vê, e diz: “Você, que já desistiu de tudo, eu chamo você a ser um grande santo, a me amar como ninguém jamais me amou”.
Iluminados e incentivados pelo Coração Imaculado da Santíssima Virgem Maria, peçamos a nossa Mãe, Nossa Senhora da Conceição Aparecida, que tire o Brasil da mediocridade e fale ao coração de cada um de nós. O Brasil se converterá se cada um, individualmente, se converter. Vamos parar de descarregar a culpa no sistema e nos outros, e vamos dizer: “Eis-me aqui!” E, como São Mateus, convidar outros pecadores a se sentarem à mesa com Jesus para que todos, convertidos, possamos realizar a nossa vocação de Terra de Santa Cruz.
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