No início da própria conversão, as pessoas abandonam os pecados mais grosseiros (bebedeiras, orgias, roubos etc), e a sua vida assume certa sobriedade e constância para as coisas do Céu. Elas já rezam com mais frequência, praticam algumas virtudes e, quando percebem suas faltas, não demoram para procurar o auxílio de um sacerdote. Apesar desse progresso, no entanto, essas almas ainda têm de enfrentar um obstáculo dificílimo para realmente cruzarem a passagem das Terceiras às Quartas Moradas da vida interior: a irritação.
Não é difícil encontrar padres, religiosos e leigos que a qualquer sinal de contrariedade demonstram uma ira surpreendente. Basta que lhe façam uma única injustiça para que o mundo venha abaixo.
Em primeiro lugar, as almas que se encontram assim precisam confiar em Deus. A passagem das Terceiras para as Quartas Moradas depende exclusivamente de uma intervenção divina, que só acontecerá no momento de Deus. Enquanto isso, a alma precisa manter-se firme na oração, nas práticas de piedade, suportando toda essa miséria por amor ao Senhor, segundo o itinerário que São Pedro apresenta: “Esforçai-vos quanto possível por unir à vossa fé a virtude, à virtude a ciência, à ciência a temperança, à temperança a paciência, à paciência a piedade, à piedade o amor fraterno, e ao amor fraterno a caridade” (2Pe 1, 5-7).
A alma em estado de graça, embora já possua certa caridade, ainda precisa purificar-se de muitas paixões desordenadas, e essa purificação serve para unir o coração do homem ao “manso e humilde” Coração de Jesus, que concede aos seus amigos a “paciência infusa”. Nesse sentido, a alma necessita ser constante para suportar as provações. Com essa perseverança, a pessoa poderá cumprir a plenitude da lei pela humildade diante de Deus e a mansidão diante do próximo.
A ira é uma das tantas paixões que movimentam o homem para certa direção. Em si mesma, ela não é boa nem ruim, pois as paixões “são componentes naturais do psiquismo humano” e “constituem o lugar de passagem e garantem a ligação entre a vida sensível e a vida do espírito” (Catecismo, n. 1764). A sua moralidade depende da inteligência e da vontade, de modo que todos esses sentimentos precisam ser regulados pela alma: “As paixões são moralmente boas quando contribuem para uma ação boa, e más, no caso contrário” (Catecismo, n. 1768).
O apetite irascível tem quase as mesmas características do apetite concupiscível. Este último se refere àqueles desejos mais vulgares (comida, sexo e outros prazeres), enquanto aquele trata dos chamados “bens árduos”. Mas o princípio deles é o desejo de algum bem. No caso do apetite concupiscível, a alma em estado de graça geralmente consegue controlá-los, quando se trata de coisas desregradas, que esbarram em obstáculos como a vergonha e a timidez. No caso do apetite irascível, porém, ele pode perfeitamente se passar por virtude, quando, por exemplo, alguém se exalta porque sofreu algum prejuízo. A pessoa age com severidade, pensando estar cumprindo a justiça, mas, na verdade, acaba pecando por falta de paciência e benevolência.
Santo Tomás de Aquino explica que o princípio da ira é o obstáculo entre aquele que deseja e o objeto desejado. O cachorro rosna quando lhe tomam o osso. O osso se tornou um “bem árduo” para o animal. Os homens, por sua vez, precisam orientar a própria vontade para o Bem supremo, precisam desejar bens racionais. E isso exige a ordem das paixões, para que estas não dominem sobre o coração. Trata-se de crescer nas virtudes como meio para se chegar à perfeição moral, isto é, “que o homem não seja movido para o bem só pela vontade, mas também pelo apetite sensível, segundo esta palavra do Salmo: ‘O meu coração e a minha carne exultam no Deus vivo’” (Catecismo, n. 1770).
O primeiro passo para controlar a ira é a reflexão sobre o bem desejado. Afinal, Deus criou a ira para que tivéssemos energia e coragem na busca da santidade. A ira é o combustível da virtude da fortaleza, que nos ajuda a resistir às tentações e realizar as obras de caridade. Portanto, quando nossa carne deseja um bem contrário ao Bem supremo, quando coloca a criatura acima do Criador, precisamos voltar nossos olhares para Deus imediatamente. Quando pretendemos chegar pontualmente a um compromisso, mas as circunstâncias nos impedem, a única solução é aceitar o atraso. A ira, nesse caso, de nada adiantará, e ainda pode ser um motor para o pecado grave.
O grande problema da ira é a irracionalidade dos desejos. Se uma pessoa é calva e zanga-se por isso, a sua ira é inútil porque se trata de algo que ela não pode mudar. Sendo assim, o calvo precisa reorientar a sua energia para os desejos santos, para o verdadeiro Bem.
É mais forte o soldado que suporta as provações da trincheira do que aquele que apenas atira no campo de batalha uma única vez. Os homens fortes são pacientes, pois Cristo foi paciente na cruz. Vale, portanto, o conselho de São Josemaria Escrivá: “Serenidade. — Por que te zangas, se zangando-te ofendes a Deus, incomodas os outros, passas tu mesmo um mau bocado… e, por fim, tens de acalmar-te?” (Caminho, n. 8).
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