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Os Quarenta Mártires do Brasil

Depois de muito se prepararem para vir ao Brasil, o Beato Inácio de Azevedo e seus amigos acabaram morrendo no meio do caminho, sem que jamais chegassem a aportar em nossa terra. O que parecia ser um fracasso a olhos humanos, no entanto, reverteu em nosso próprio proveito espiritual.

Texto do episódio
01

Queremos falar dos quarenta mártires que deram sua vida para evangelizar o Brasil: o Bem-aventurado Inácio de Azevedo e seus trinta e nove companheiros. Embora não o conheçamos devidamente (o que é uma pena), é ao sangue deles que devemos nossa fé, porque esses homens cruzaram o oceano para vir a estas terras trazer a verdadeira religião. Vamos então comentar um pouco da história desses heróis para entendermos como o exemplo deles pode nos ajudar a mudar de vida. 

O relato do martírio. — Quando Inácio de Azevedo e seus companheiros foram enviados ao Brasil, já estava em nossas terras São José de Anchieta, que havia aberto casas de jesuítas ao longo do litoral. A realização desse trabalho não se deu sem dificuldades, porque, além dos obstáculos materiais, havia também obstáculos humanos. Por exemplo: algumas tribos indígenas não viam problema algum em oferecer seus membros (especialmente mulheres e moças) como moeda de troca para satisfazer os desejos sexuais dos portugueses. Além disso, a prática do canibalismo era algo comum. O próprio São José de Anchieta relata que uma índia catequizada e batizada, ao ser atendida por ele no leito de morte, teve como último desejo comer uma sopa de dedinhos de criança (desejo este que ela mesma reconhecia ser um pecado).

Por causa dessas e de outras dificuldades, o padre Inácio de Azevedo pediu ao então recém-eleito superior geral da Companhia de Jesus, ninguém menos que São Francisco de Bórgia, para vir ao Brasil como visitador. Ele via nisso um enorme desafio a ser vencido em prol da evangelização.

A solicitação foi atendida, e ele ficou cerca de dois anos e meio viajando pela costa do Brasil com São José de Anchieta, padre Manuel da Nóbrega e outros. Nesse período, houve inclusive um episódio muito interessante que revela a grandeza daqueles homens. Depois de o barco em que se encontravam quase naufragar por causa de uma baleia, São José de Anchieta afirmou que foram protegidos por um milagre realizado por Inácio de Azevedo. Alguns hagiógrafos, por outro lado, contam que o milagre foi feito por São José de Anchieta, que, por humildade, o atribuiu a Inácio. 

Quanto mais percorria o território brasileiro, mais o Beato Inácio de Azevedo se afeiçoava àquela terra tão difícil de evangelizar. Eram milhares e milhares de almas que se perdiam. Diante disso, ele foi à Europa pedir a São Francisco de Bórgia a permissão para passar pelos colégios da Companhia e convidar jovens para irem ao Brasil. Ele não apenas recebeu a autorização, mas também foi recebido em audiência pelo Papa São Pio V, que, além da bênção, de indulgências e de relíquias, deu a ele uma cópia do ícone milagroso de Nossa Senhora Salvadora do Povo Romano, cujo original se encontra na Basílica de Santa Maria Maior. Foi a primeira vez que um Papa autorizou a realização de uma réplica do ícone. A cópia seria destinada à rainha de Portugal, e Inácio aproveitou a ocasião para encomendar outras, a fim de distribuí-las a algumas casas jesuítas. 

Inácio conseguiu convencer setenta jovens a partirem em missão para o Brasil. O feito foi mesmo grandioso, porque uma missão como aquela representava um enorme perigo. Eles teriam de ir a um local inóspito e recém-descoberto, o que significava dizer adeus à família, sem a expectativa de regresso. Uma vez formado, o grupo partiu em direção ao novo continente. 

O navio do Bem-aventurado Inácio deveria acompanhar as embarcações do novo governador geral do Brasil, que seria escoltado por uma frota armada, pois os mares eram bastante perigosos. As embarcações pararam na Ilha da Madeira e por lá ficaram além do tempo previsto. O capitão da nau Santiago, na qual estavam Inácio e outros trinta e nove companheiros (o restante do grupo estava em outras embarcações), decidiu partir antes do governador geral, mesmo tendo sido advertido de que a decisão envolvia um enorme risco. Partiram e foram até as Ilhas Canárias, onde o padre Inácio celebrou a Santa Missa, durante a qual teve uma experiência mística que o levou a enxergar seu próprio martírio e o de seus companheiros.

Depois de terem partido para o Brasil, o grupo foi avistado por piratas franceses (calvinistas conhecidos como huguenotes) que haviam sido perseguidos pela frota do governador geral. Tendo visto que a nau estava repleta de jesuítas, o chefe dos piratas ordenou que fossem mortos para impedir que espalhassem a “falsa doutrina” [1].

O primeiro a morrer foi Bento de Castro, que havia ido até a borda da embarcação para pregar aos calvinistas. Em seguida, o Beato Inácio foi atingido por uma espadada na cabeça. Naquele momento, segurava o ícone de Nossa Senhora do qual havia feito uma cópia. Antes de morrer, disse: “Que todos sejam testemunha de que morro pela fé católica e pela Igreja romana.” Então, um de seus companheiros, o padre Diogo de Andrade, deu-lhe a absolvição. Antes de dar o último suspiro, ele disse: “Irmãos, coragem! Vou preparar-vos um lugar no céu.” Logo após, alguns membros do grupo foram lançados vivos ao mar, outros tiveram membros cortados etc [2].

Por que Deus permite algo assim? — É interessante notar que o padre Inácio não era um excelente pregador. Seu talento residia na capacidade de convencer as pessoas. Não é de estranhar que ele tenha conseguido formar um grupo tão grande de homens que decidiram abandonar tudo o que tinham para ir a um território desconhecido com o objetivo de pregar o Evangelho. Muitos deles tinham certeza de que não retornariam para casa. Ora, quando pensamos nesse talento de Inácio e na vida de cada um daqueles que o acompanharam, podemos nos perguntar: por que Deus permite uma coisa dessas? O Brasil não precisava tanto de missionários? 

Sim! Porém, precisava mais de mártires, e a explicação disso está naquilo que a teologia chama de causa meritória. Vejamos um bom exemplo: um homem trabalha arduamente para comprar um escravo e libertá-lo. Esse homem é a causa meritória. Mas quando ele consegue acumular a quantia necessária, em vez de entregar pessoalmente o dinheiro ao dono daquele escravo, pede que um funcionário o faça em seu lugar. Este funcionário se torna, por isso, a causa instrumental da libertação do escravo.

Ora, é evidente que a causa meritória de nossa salvação é Nosso Senhor, já que uma única gota de seu sangue bastaria para nos redimir. No entanto, esse Deus de amor quer também que nós amemos, e para isso é necessário que morramos para nosso próprio egoísmo. Portanto, de modo misterioso Ele quer que o martírio de alguns sirva de causa meritória para outros. E isso só é possível porque os mártires estão cheios do Espírito Santo, particularmente dos dons da fortaleza e da sabedoria. Por amarem a Cristo de forma tão profunda, identificando-se assim com Ele, podemos dizer que os mártires merecem a salvação de muitos de nós. 

O sangue desses mártires fecundou a evangelização no Brasil. Portanto, não há razões para duvidar de que muito do que ocorreu ao longo dos quinhentos anos de disseminação da fé em nosso país se deveu ao sacrifício deles.

Como podemos aplicar isso em nossa vida? — Quando insistimos na ideia de que somos família, ou seja, uma unidade espiritual, temos em mente o fato de que cada um dos nossos sacrifícios tem enorme valor aos olhos de Deus. Todas as penitências que fazemos e entregamos nas mãos de Nossa Senhora são um verdadeiro tesouro que está sendo usado para evangelizar. Foi exatamente o caso dos pastorinhos de Fátima. Os sacrifícios feitos por eles foram, de algum modo, causa meritória da salvação de milhares de pecadores.

Por essa razão, é possível afirmar que, se quisermos ser santos, precisamos ser apaixonados pelo martírio tal como os grandes santos: Santa Teresinha, Santa Teresa d’Ávila e tantos outros. Esse apreço pelo martírio criou neles uma predisposição para aceitar o sofrimento. Por isso, não podemos temer as cruzes que tivermos de enfrentar ao longo da vida. Elas são o caminho necessário para a salvação. Por trás de cada cruz que vivemos, sempre há uma ressurreição. Isso foi algo pensado por Deus antes de cada um de nós vir ao mundo. Portanto, o que temos de fazer é pedir a Ele a graça de abraçarmos a cruz designada para matar o homem velho que habita em nós. “Vós morrestes por mim, Senhor! Como não vou querer morrer por vós?!” 

No fim das contas, Deus quer ser o nosso cirineu. Essa verdade teológica está expressa de forma brilhante no filme A Paixão de Cristo, que retrata Jesus ajudando Simão a carregar a cruz. Quando Jesus cai, a cruz quase esmaga Simão. Com isso, o diretor do filme, Mel Gibson, não quis retratar tanto a exatidão histórica daquele momento, mas a verdade espiritual contida nele: sem Cristo, nossa cruz se torna ainda mais pesada

Portanto, quando tivermos de passar por momentos de sofrimento, reclinemos a cabeça no peito de Nosso Senhor, tal como Ele fez com o Pai no momento de sua flagelação e agonia. Peçamos essa graça especial à Santíssima Virgem, pois, com o Cristo, o fardo é leve e o jugo é suave. Foi exatamente assim que Inácio de Azevedo e seus companheiros morreram: alegres por terem enxergado com clareza esse elemento fundamental da vida espiritual.

Notas

  1. Uma das provas do ódio dos calvinistas à fé católica é o fato de eles terem matado apenas aqueles que estavam identificados como jesuítas. Um dos tripulantes, um jovem que ainda não havia recebido o hábito, acabou sendo poupado por um tempo, até que descobriram que ele também era um religioso.
  2. Na obra Novas Páginas de História do Brasil (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965), do padre Serafim Leite, S. J., é possível ter acesso a mais detalhes sobre cada um dos quarenta mártires. O mais novo deles, por exemplo, tinha quatorze anos. O pai dele era cego e por isso o rapaz lhe servia de guia. Além disso, tinha uma belíssima voz. Outro era parente de Santa Teresa d’Ávila, que numa experiência mística também enxergou o martírio do grupo no exato momento em que ele acontecia.
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