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Texto do episódio
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Nesta aula de lançamento do curso de férias As Navegações Portuguesas, Padre Paulo Ricardo mostra a importância de conhecermos nosso passado e nossa identidade para darmos sentido ao nosso futuro e, assim, pararmos de viver como uma metamorfose ambulante, que prefere permanecer no vazio a reconciliar-se com a própria história.

Além disso, Padre Paulo também explica o que este curso tem a ver com as nossas vidas, como ele está estruturado e em que ele se diferencia de tantas outras tentativas de analisar a História de Portugal e do Brasil.

A descoberta de nossa identidade

Antes mesmo de ser lançado, o curso As Navegações Portuguesas gerou uma grande repercussão em nossas redes sociais; e confesso que fui surpreendido pela boa acolhida do tema, pois este era um desses cursos que eu “precisava gravar para mim mesmo”, ainda que as pessoas não se interessassem tanto pelo assunto. No entanto, penso que se trata de um estudo que será muito importante para os alunos do site, assim como foi para mim.

Há tempos, percebi que era preciso entender um pouco da identidade de Portugal e da herança que recebemos dos portugueses, a fim de compreender exatamente quem sou e qual a minha vocação. Mas o que a História de Portugal, das grandes navegações e do Infante Dom Henrique, que viveu seiscentos anos atrás, dizem respeito às nossas vidas hoje?

É que uma das formas de sabermos a identidade de uma coisa — o que algo é substancialmente —, consiste em conhecermos a sua história. Sem história, não possuímos identidade.

Usando um pouco a imaginação, podemos constatar isso de forma bem concreta. Suponhamos que temos às mãos dois ovos: um de pato, um pouco menor do que o comum; e um de galinha, um pouco maior do que o normal — e, por isso, ambos parecem absolutamente iguais, sem que seja possível distinguir pelo olhar qual é qual. Ora, a solução mais simples é procurar olhar para a história daqueles ovos. Basta colocá-los para chocar: se o animal que sair de um deles fizer “piu-piu”, é um ovo de galinha; se fizer “quaquá”, é de pato.

O que acontece hoje, porém, é que as pessoas, muitas vezes dissociadas da meditação sobre a história de algo, não entendem o que aquilo é. Por exemplo, aqueles que defendem o aborto afirmam que o feto é “só um amontoado de células no corpo da mulher”. Sim, mas qualquer “amontoado de células” tem uma história própria, que distingue a real substância da coisa. Caso se desenvolva e diga: “Mamãe!”, é uma criança; mas se crescer desordenadamente na forma de um tumor, colocando sua vida em risco, é um câncer.

Todos nós, seres humanos, temos uma vocação. Mas não nascemos de “lugar nenhum”: eu, Padre Paulo Ricardo, nasci no Brasil, no século XX, em 1967; recebi uma herança cultural — e, consequentemente, uma herança espiritual. O que sou e o que faz com que eu me mova e busque realizar as coisas que assumi como minha responsabilidade? Que ideal faz com que eu queira lutar e dar a minha vida se for preciso? É isso o que me dá identidade e me faz sair do lugar.

Exatamente porque as pessoas hoje não têm mais identidade, personalidade e história é que elas estão se tornando cada vez mais apáticas. Basta ver os jovens atuais: passam o dia inteiro com o celular na mão, sem qualquer perspectiva real do que poderiam se tornar. As pessoas estão se tornando amorfas: não vêm de lugar algum, não possuem história própria nem identidade. É por isso que muitos, hoje, sequer sabem se são homens, mulheres ou uma “terceira coisa”, LGBTQI+ etc… A pessoa muda de identidade a cada momento, vive na “espiritualidade do Raul Seixas”, como uma metamorfose ambulante.

No entanto, devemos ter a consciência de que, embora a massinha de modelar seja bastante maleável, não serve para construir prédios ou qualquer coisa mais sólida e duradoura. Não podemos fazer nada com ela a não ser brincar, porque ela não tem “identidade”. É preciso buscar uma identidade para aspirar qualquer coisa concreta nesta vida, e para isso é fundamental conhecer a nossa própria história. Afinal, quem não tem passado não tem futuro. A narrativa do passado nos aponta quem somos, até mesmo para que possamos nos revoltar contra esse passado e, se for preciso, busquemos ser algo diferente dele.

Uma conversão é um fenômeno que acontece em nosso interior, a partir de um sincero exame de consciência. Esse exame de consciência próprio da conversão nada mais é que uma narrativa de nosso passado: analisamos quem fomos até aquele momento, para então construirmos quem seremos dali em diante. Sem história, nada fazemos, não saímos do lugar, não temos qualquer ponto de partida para uma perspectiva de futuro.

O filósofo Paul Ricoeur falava exatamente sobre isso. Por que a juventude atual não tem futuro e está cada vez mais desesperada? Porque não tem passado! Fazendo uma comparação, é como se tivéssemos à frente um temível abismo, que precisamos atravessar pulando de um lado para o outro. Nessa situação, não se pode parar à beira do abismo com os dois pés juntos para, assim, tentar pular para o outro lado. Na beira do abismo, o que se faz é tomar distância, correr, pegar impulso e, finalmente, pular. Assim também ocorre na vida pessoal: só tem futuro quem tem passado; quem vai para trás, tomar impulso para pular. É uma metáfora simples, mas que nos fala daquilo que é a psicologia humana e de como funciona o nosso espírito.

Somos diferentes dos animais, que não têm futuro ou missão. O bezerro no pasto não pensa sobre o que ele será quando crescer, pois está plenamente realizado em sua “felicidade bovina” sendo o que é, exatamente no lugar em que está.

Eis um problema geracional que estamos presenciando: pessoas “felizes”, ou ao menos conformadas, na sua “felicidade bovina”. Mas em vez de darmos capim, damos celulares na mão dos jovens, e por ali mesmo eles permanecem. O problema dessa conformidade bovina nos seres humanos é que, ao contrário de nós, as vacas não têm alma e, vivendo essa vida que é própria de sua espécie, não adoecem. O humano tem alma e adoece. Por isso, um número enorme e crescente de jovens estão constantemente pensando em suicídio: pois não possuem perspectiva de futuro. E estão assim porque, em primeiro lugar, sequer sabem quem são — jamais se deram o trabalho de acompanhar a sua história, em sua própria narrativa: “Quem sou como pessoa?”

Bem, muitos devem estar se perguntando: o que isso tem a ver com Portugal? Chegaremos lá, mas primeiro é preciso entender que o curso As Navegações Portuguesas nasceu de uma necessidade pessoal de saber quem eu sou.

A força da personalidade é o que move a história

O famoso escritor romântico Goethe, em seus últimos anos de vida, foi acompanhado pelo jovem poeta e escritor Johann Peter Eckermann, que registrou esse convívio no livro “Gespräche mit Goethe in den letzten Jahren seines Lebens” (Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida: 1823-1832, traduzido pela Edusp) [1].

Num certo domingo, dia 13 de fevereiro de 1871, Eckermann anotou a seguinte frase do autor de Fausto: “Allerdings, ist in der Kunst und Poesie die Persönlichkeit alles”, — “Em última análise, […] a personalidade é tudo”. Goethe está se referindo à arte e à poesia, mas esse adágio pessoal também serve para nossas vidas. Em outras palavras, para que alguém consiga distinguir e honrar uma grande personalidade (“eine große Persönlichkeit”), é necessário que essa pessoa seja alguma coisa. Quem não tem identidade alguma, olhará para a história, para suas grandes personagens, e não verá nada. Assim, conseguimos vislumbrar um pouco melhor o nosso objetivo com a apresentação da história das navegações.

Muß man auch wiederum selber etwas sein” — “Precisa ser em nós mesmos alguma coisa” — “etwas”. Quem é nada, também não reconhecerá o valor das grandes personalidades. O que consigo ver na minha própria história? Em minha biografia, percebo que fui gerado por grandes personalidades. Ao ler, por exemplo, São Tomás de Aquino, medito sobre aquilo e deixo-me gerar por aquele grande gênio: portanto, Tomás de Aquino é meu pai — um dos tantos pais que tenho e pelos quais me deixo ser gerado. Mas, se não reconhecesse a grande personalidade de Santo Tomás, não conseguiria deixar que ele gerasse qualquer coisa em meu interior, e também não seria nada.

É importante entendermos isso, e por isso reforçamos: se você quer ter futuro, precisa ter passado. Aqueles que desejam “não ter passado” são como aqueles que vão para a mata “começar do zero”: querem descobrir novamente o fogo, criar a roda… Mas não conseguirão; é tarde demais: já receberam uma língua — a Língua Portuguesa — e já possuem uma cultura, de modo que pensam conforme esse legado que receberam.

Nós somos alguma coisa porque recebemos algo; por isso, devemos olhar para a História de Portugal e reconhecer as personalidades que geraram quem nós somos. Nosso interesse com as navegações portuguesas é investigá-las para entender quem foram os agentes do passado que contribuíram para que fôssemos quem nós somos hoje. Seja de forma consciente ou inconsciente, também somos seus “filhos”.

Qual a relação comum entre um filho e um pai? Quando é criança, o filho admira o papai como um herói; e existe certa corrente da historiografia de Portugal na qual só há heróis. Por exemplo, o livro Portugal nos Mares: Ensaios de Crítica, História e Geographia (1889), de Oliveira Martins, narra uma história de Portugal cheia de heróis, bastante romântica e de eminente espírito cruzado. Faz parte do processo historiográfico começarmos a partir de grandes heróis. Mas depois surge um outro movimento historiográfico, de Antônio Sérgio, influenciado pelo socialismo de Proudhon —, e também o de Jaime Cortesão, com influências liberais e permeado um pensamento um tanto maçônico —, que pretende ser mais realista, mas que acaba desembocando na ideologia; ou seja, é uma historiografia de traços “adolescentes”, na qual são completamente rejeitados os heróis do passado por pretenso “senso crítico”, como gostam de dizer os marxistas. Antônio Sérgio, por exemplo, é daqueles que pensam que tudo pode ser explicado pela economia, pelo interesse mercantil, ainda que os documentos da época não apresentem nenhum sinal disso.

Uma visão adulta da história é diferente da visão das crianças, que só veem heróis, e da perspectiva dos adolescentes, que só enxergam críticas a serem feitas. O homem adulto é aquele que se reconciliou com o seu passado: olha para os seus pais, percebe que há muitas coisas boas neles, e então agradece a Deus por tê-las recebido; mas também é capaz de enxergar certos defeitos que precisa corrigir, reconciliando-se consigo mesmo. Essa é a minha atitude com relação à História de Portugal.

Objetivo e divisão do curso “Navegações Portuguesas”

Há algo a respeito da nossa abordagem no curso As Navegações Portuguesas que é importante esclarecer desde o início: não faremos uma leitura ideológica da História de Portugal. O que vamos fazer é dar aos alunos material para meditação: confrontar-nos com grandes personalidades, e assim tirar algo de proveitoso para nossas próprias vidas. O que possuímos das virtudes dessas personagens? Quais erros elas cometeram nos quais também nós caímos? Vamos dar essa oportunidade para que nossos alunos, olhando para essa história, possam se conhecer melhor. E assim vamos ter um futuro.

Já adianto que não serão aulas curtas, de vinte ou trinta minutos, como temos em outros cursos. As Navegações Portuguesas é um curso com muito material histórico e meditativo; e, por isso, as aulas possuem em torno de cinquenta minutos a uma hora. Há, desde o lançamento, bastante conteúdo para que os interessados “maratonem”; mas não recomendamos que façam dessa maneira. Nosso intuito é que todos os que assistirem às aulas realmente meditem — aproveitando o curso menos esquematicamente e mais em carne e osso, encontrando-se em cada episódio com essas personalidades e suas escolhas, com os dramas que viveram e as escolhas que fizeram; escolhas estas que influenciaram o futuro, a nossa história, e revelam em grande parte o sentido do que somos hoje.

O curso será dividido em três partes. A primeira pode surpreender a muitos, pois chama-se O cruzado — sim, estamos nos referindo às Cruzadas, ao Portugal medieval, que ainda não é o das caravelas; pois sem entender o ideal cruzado, jamais compreenderemos o início do movimento das navegações. Esse ideal não é algo que permeia todo o movimento, mas está realmente presente em suas origens, onde conheceremos grandes personagens como Afonso Henriques, Nuno Álvares Pereira e o próprio Infante Dom Henrique — principal impulsionador das navegações —, que tem muito do caráter de um cruzado.

A segunda parte do curso é O mercador, na qual veremos que o Infante Dom Henrique, embora fosse verdadeiramente um cruzado — sagrado cavaleiro em Ceuta no início das navegações — também viu, em seus últimos doze anos de vida, grandes oportunidades no comércio. E é exatamente essa função de mercador que vai sendo assumida aos poucos pelo próprio Estado português.

Em outras palavras, algo que antes era um elemento secundário do movimento de expansão ultramarina torna-se aos poucos quase que a finalidade principal, à medida que são captados recursos para a construção das naus e o Reino vai se retroalimentando economicamente. Isso ocorreu principalmente na fase da exploração da Guiné… Depois veio o reinado de D. João II e de D. Manuel, no qual os portugueses chegaram às Índias, com a figura de Vasco da Gama.

Mas, ao mesmo tempo em que o espírito cruzado não morreu, mas foi assumindo o papel de mercador; também essa figura não morre mas vai se tornando uma outra realidade; e por isso nomeei a terceira parte do curso de O rei. Poderia também ter chamado de O Estado, mas esse é um conceito um tanto moderno para o período histórico que queremos retratar. 

Por que então O rei? Porque existe algo neste papel com um certo sabor de messianismo — e depois de sebastianismo — no final das navegações; ou seja, no reinado de D. Manuel, mas também posteriormente com D. Sebastião, até terminar esse grande ciclo com a União Ibérica. No fundo, no fundo — com o perdão do trocadilho —, as navegações naufragaram em Alcácer-Quibir quando desapareceu D. Sebastião, mas o “mito” daquele movimento não morreu com ele, e surge toda a questão do Quinto Império… Vamos acenar um pouco sobre esse tema.

O que nos interessa sobretudo é colher as lições e as virtudes das personagens históricas. Vamos olhar os acontecimentos, mas focando principalmente nas pessoas; meditando sobre essas coisas para encontrar uma identidade, perceber de onde nós viemos e quem nós somos.

Isso significa que iremos nos afastar da tendência historiográfica que se refere a Portugal como uma entidade. Camões, grande poeta, tem direito de fazer isso, de cantar o “peito ilustre lusitano”, como fez na terceira estrofe do primeiro Canto de Os Lusíadas:

Cessem do sábio grego e do troiano
As navegações grandes que fizeram; 
Cale-se de Alexandre e de Trajano 
A fama das vitórias que tiveram; 
Que eu canto o peito ilustre lusitano, 
A quem Netuno e Marte obedeceram.  
Cesse tudo o que a musa antiga canta, 
Que outro valor mais alto se alevanta.

Camões tinha razão de se orgulhar tanto dos feitos portugueses; mas essa tendência de personificação do país, dessa entidade “Portugal”, do “peito ilustre lusitano”, não é o caminho que seguiremos. Pois havia, sim, “peito ilustre” lusitano, como havia também “sem-vergonha” lusitano, como havia covarde lusitano; e também, claro, santos lusitanos e gente lusitana no Inferno. Portanto, somos avessos a essa história de coletivização das responsabilidades, uma tendência que, em certa medida, parece ser gnóstica; como se alguém dissesse: “Eu nunca sou responsável pelo que faço; sempre foi Portugal quem fez isso”.

Agora, é claro que há uma história coletiva, pois não se pode individualizar tudo. Afinal, aquele indivíduo veio daquela cultura, daquela história anterior, e, exatamente porque era filho de portugueses, conseguiu fazer aquilo. E é nesse ponto que nasce a minha grande curiosidade envolvendo Portugal: quando olhamos para aquilo que foram as navegações — principalmente no período da dinastia de Avis —, concluímos que aquilo tinha tudo para dar errado, mas foi um grande triunfo! Ainda que o próprio Camões, já em Os Lusíadas, começasse a advertir Dom Sebastião sobre a decadência de Portugal, o que nos diz que aquilo também era um empreendimento cheio de dificuldades e falhas humanas.

A “Finisterra do Velho Mundo” na vanguarda das navegações

Por que As Navegações Portuguesas deram tão certo — enquanto deram certo? O que havia de especial naquela nação? Luís Filipe F. R. Thomaz, um dos grandes historiadores e intérpretes atuais da História de Portugal, no primeiro capítulo do seu livro De Ceuta a Timor — intitulado Expansão portuguesa e Expansão europeia: Reflexões em Torno da Génese dos Descobrimentos que está disponível em pdf para os alunos — faz uma reflexão justamente em torno dessa pergunta, que nos levou a elaborar este curso. Luís Filipe Thomaz diz que o mais perturbante em relação às navegações europeias “é a precocidade da expansão de Portugal”. Ou seja, é natural que a Europa um dia tenha se expandido e conquistado o mundo; mas espanta-nos o fato de que Portugal tenha iniciado esse movimento. Para o autor: “O paradoxo está no fato de a vanguarda da expansão europeia partir exatamente de um país que praticamente de nenhum ponto de vista se pode considerar a vanguarda da Europa” [2].

Portugal era conhecido como “Finisterra do Velho Mundo” (expressão aportuguesada do latim “finis terrae”, “o fim da terra”), sendo, portanto, um lugar bastante improvável para o início das navegações:

Finisterra do Velho Mundo, até a expansão agora em causa área marginal, arcaizante na língua e na cultura como quase todas as áreas marginais, quase insular, entalada entre a Meseta imensa e o Oceano infinito, sempre fora o último rincão da Península a acolher as inovações — vindas na sua maioria de além-Pirineus, onde, então como hoje, se situava o centro do espaço cultural europeu [3].

Isto é, Portugal era assim como hoje a periferia econômica, política e cultural da Europa. Como, de repente, aquele país que era quase uma “ilha” entre a Meseta (o planalto espanhol) e o oceano — ou  “entre o muro de Castela e o mar”, para usar uma expressão de Zurara, cronista da época do Infante D. Henrique — desenvolveu tão precocemente a sua capacidade de expansão ultramarina?

Voltaire, por exemplo, falava da corte de Portugal como a mais piegas e carola de toda a Europa. Seja no passado ou no presente, o centro do espaço cultural europeu sempre estiveram a França, a Inglaterra, a Itália e a Alemanha, enquanto Portugal sempre foi periférico nesse quesito. Então, vamos investigar como é possível que esse país tenha-se tornado a vanguarda e a grande potência do movimento das navegações.

Embora este curso deva muito à análise do Luís Filipe Thomaz — que traz essa divisão das três causas da expansão portuguesa — gostaríamos de transcender essa atitude de tentar explicar somente Portugal para também nos explicar, e assim ver o que é realmente a nossa vocação.

Sendo esta a reflexão de um padre, não podemos deixar de ver o que aconteceu com o cristianismo neste período das navegações portuguesas. O cristianismo foi um fator importante porque, sem ele, não haveria o cruzado e, surpreendentemente, também não haveria o mercador. Sim, porque o capitalismo que estava sendo gerado ali não foi desenvolvido pelos árabes nem pela China; foi gerado em ambiente cristão. Não se trata de fazer uma defesa do capitalismo, mas apenas de constatar que esse sistema econômico não existiria se não fosse o elemento cristão. E, finalmente, a questão do Estado, o rei: a precocidade da consolidação do Estado português fez com que as Cruzadas de Portugal tivessem mais sucesso que a quase anarquia das Cruzadas promovidas pelo restante da Europa, toda composta de uma “colcha de retalhos” feudal, sem uma centralidade estatal.

Então, ao analisarmos esses três grandes personagens e seus atores — os nobres (O cruzado), os burgueses (O mercador) e os monarcas (O rei); iremos tirar importantes conclusões.

Como grande cruzado e nobre, veremos, por exemplo, um santo da estatura de São Nuno de Santa Maria, Nuno Álvares Pereira, o Santo Condestável. Mas só a grandeza de um Nun’Álvares, nobre, cristão e santo, não faria por si só as navegações. Foi a imitação maldestra de São Nuno, realizada pelo Infante D. Henrique, o que fez com que Portugal finalmente se lançasse às águas. Ele soube aproveitar-se da conciliação — tão típica do gênio português — entre os interesses dos nobres, dos burgueses e do rei.

Conheceremos também a personalidade de alguns dos nossos navegadores, como o difícil Vasco da Gama. Veremos também a personalidade D. Manuel, o Venturoso, o rei da descoberta do Brasil. Vamos conhecer de fato essas pessoas, que, para nós brasileiros, são só nomes nos livros. Estudaremos também toda a personalidade controversa de um Afonso de Albuquerque, que os brasileiros sequer sabem que existe; e colher em tudo isso algumas coisas que dizem respeito a quem nós somos, para que possamos então dizer: “Eu sou parte dessa história. É daí que eu vim e agora me compreendo melhor”; para então podermos dar passos mais firmes em direção ao futuro.

Vamos viajar juntos, “navegar é preciso”! Faremos grandes incursões na história para conhecermos melhor essas pessoas encantadoras, surpreendentes e decepcionantes, vendo quem nós somos e o quanto o Brasil é parte dessa história. Esse é só o primeiro capítulo da nossa história, e depois, quem sabe, poderíamos fazer um outro curso, com uma meditação sobre os personagens da História do Brasil.

Deixo, portanto, o meu convite para que você entre no site e venha fazer este curso sobre As Navegações Portuguesas. Esta aula de lançamento serve para lançar a vocês esse desafio.

Mas, desde já, é importante também “baixar as armas” daqueles que acham que apresentaremos somente uma peça de algum esquema ideológico. Não é esse o nosso intuito. Não estamos aqui para dar lições a Portugal do que deve ser Portugal, nem para o Brasil sobre o que deve ser o Brasil. Da minha parte, estou aqui simplesmente como um simples padre brasileiro que crê que Deus tem, na sua Providência, uma vocação para nós, que precisa ser descoberta e vivida.

Duas nações: uma só vocação

Há dois elementos nas aparições de Fátima que me deixaram bastante intrigado em relação a Portugal, e que acabaram me levando a estudar a história desse país. A primeira foi a aparição do Anjo de Portugal aos pastorinhos — pois não sabia que os países possuíam anjos da guarda. E consultando o Missal de Portugal, com suas Missas Próprias, vi que há a Festa do Anjo de Portugal, cuja veneração existe há séculos em terras lusitanas, muito antes de Fátima.

Ao estudar Angelologia (tema disponível em nosso curso Anjos e Demônios), descobri que Deus, ao estabelecer o seu projeto para nós, deu-nos não somente um anjo da guarda pessoal, mas também anjos que coordenam os nossos anjos. Ora, se temos a ver um com os outros, se estamos relacionados dentro de um grupo social, o projeto de Deus para a nossa salvação tem a ver com esta sociedade na qual vivemos, e, portanto, seria muito pouco sábio concluirmos que Deus não está coordenando todo esse processo. O Anjo de Portugal é justamente aquele que articula a ação dos anjos de todos os portugueses. Dito de outro modo, Deus quer que cada um dos portugueses cheguem ao Céu; mas uma vez que, vivendo em sociedade, eles se afetam mutuamente — política, econômica, cultural e espiritualmente — Deus, em sua sabedoria, designa esse espírito celeste para que guarde essa nação. E é importante pensarmos que esse mesmo Anjo também coordenou o processo “do lado de cá do Atlântico” por décadas e mais décadas; afinal, devemos nos recordar que, durante a maior parte da história do Brasil — quase 300 anos —, nós fizemos parte de Portugal. Isso significa que, se não nos reconciliarmos com essa história, nada seremos.

A segunda coisa nas aparições de Fátima que me deixaram perplexo foi a afirmação de Nossa Senhora de que: Em Portugal se conservará sempre o dogma da Fé”.

Isso é intrigante porque, ao olharmos de perto a História de Portugal, vemos que ela nada parece ter a ver com o “dogma”. Inicialmente, a evangelização portuguesa não era exatamente voltada para a catequese. No curso, veremos que era uma evangelização, de certo modo, “estatal”. Evidentemente, não era como os muçulmanos faziam: brandindo a cimitarra e decepando cabeças até tomar conta do país conquistado, para instalar um governo próprio e, dali para frente, fazer com que todos fossem muçulmanos.

Os portugueses não agiram dessa forma, mas houve uma reação político-militar: a Reconquista. Portugal surgiu nas guerras que buscavam retomar dos muçulmanos as terras da Península Ibérica, que antes eram cristãs. Portanto, impondo-se militar e politicamente sobre uma terra que voltou a ser cristã. Assim também nós brasileiros fomos evangelizados inicialmente. Foi somente depois, naquele lampejo que foram os jesuítas (posteriormente expulsos pelo Marquês de Pombal), que nascemos como um Brasil evangelizado e evangelizador — foi ali que de fato apareceu o dogma e a catequese.

Mas, como diz Castro Alves, “tempos idos, extintos luzimentos, o pó da catequese [espalhou-se] aos quatro ventos”, isto é, ainda que não seja esse o sentido da poesia, podemos dizer que a evangelização evaporou. E aqui há algo que veremos no curso e também serve para a nossa meditação: o que o Brasil e Portugal devem ser, em face dessa profecia de Fátima?

Se nós tivermos um futuro conforme a vontade e o projeto de Deus, sabemos que isso também tem a ver com o dogma. Nesse sentido, temos diante de nós um projeto educacional, que precisa nascer e fazer parte dessa história que está por vir; algo que parece ter sido tolhido, mas que precisa renascer. Então, também poderemos colocar um epílogo do nosso curso, uma meditação sobre o futuro do Brasil e de Portugal: os locais onde o dogma da Fé será conservado se cumprirmos a nossa vocação.

Venha percorrer a jornada do curso As Navegações Portuguesas. Certamente os alunos irão se divertir: há coisas bastante pitorescas, surpreendentes e interessantes neste curso de férias, que também pode ser visto ao longo de todo o ano. Aproveitem as aulas conforme recomendamos: como um ponto de partida para meditar sobre a sua própria identidade e história.

Referências

  • Johann Peter Eckermann, Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida. Trad. de Mario Luiz Frungillo. São Paulo: Edusp, 2016.
  • Luís Filipe F. R. Thomaz, “Capítulo I: Expansão Portuguesa e Expansão Europeia — Reflexões em torno da génese dos Descobrimentos” In: Luís Filipe F. R. Thomaz, De Ceuta a Timor. Algés: Difel, 1994, p. 1-41.

Notas

  1. Cf. Johann Peter Eckermann, Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida. Trad. de Mario Luiz Frungillo. São Paulo: Edusp, 2016.
  2. Luís Filipe F. R. Thomaz, “Capítulo I: Expansão Portuguesa e Expansão Europeia — Reflexões em torno da génese dos Descobrimentos” In: Luís Filipe F. R. Thomaz, De Ceuta a Timor. Algés: Difel, 1994, p. 3.
  3. Ibidem, p. 3 - 4.
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